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Artigo - Devoto das umburanas

Wagner Braga Batista

 

 

Diante da devastação ambiental que suprimiu jacarandás, mognos, cedros e madeiras chamadas nobres ou de lei, restaram-nos os paus ocos. Assim são denominadas espécies nativas que não se prestam a especulação de madereiros. São depreciadas como madeira desprezivel e equiparadas a cidadãos de segunda classe, os imprestáveis,  que, segundo sua lógica excludente, não servem pra nada. Ou melhor, não se prestam para seus negócios.

 

Os paus ocos não produzem lucros, portanto não importam neste mercado que transformou a esperteza em  fonte emulação de negócios especulativos.  Expertise exaltada como novo rebento do capitalismo civilizado. Anuncia o verde e mascara a crescente sangria social e ambiental.  Subverte a ética em nome da liquidez. Assegura que a solidez de paus ocos se desfará no ar.

 

Graças a esta dinâmica, convencemo-nos da nossa liquidez. Resignamo-nos diante da  celeridade do consumo e da moda que nos levará a ser liquidos, imbecis e descartáveis.

 

A liquidez degradou santuários de vida para transformá-los em redutos da  esterilidade. Permitiu que a especulação imobiliária imobilizasse a existencia humana. Conferiu-lhe o poder de transformar áreas verdes em berçários da estupidez, celebrizados por exuberantes fachadas de shoppings.

 

Gradativamente suprimiu de nossos horizontes os paus ocos.

 

Deste modo, sentimo-nos nostálgicos dos rios, dos mangues e dos pau ocos, tão depreciados pelos refinados cultores de obras e mobiliários requintados, que, no entanto, desconhecem  o voo das abelhas e o sabor do mel.

 

Pois é,   paus ocos fazem falta a nossas vidas..

 

Caminhando pelo Parque da Cidade, em Brasilia, reconheci-me num pau oco remanescente.  Numa umburana, triste imagem de nossa contundente vulnerabilidade, ameaçada pela devastadora celeridade do mercado.

 

Num átimo, tornei-me devoto das umburanas. Destas árvores mágicas que têm asas, mas optaram por se manter fiéis as suas raízes.

 

Assim como as abelhas rainhas, que renunciaram ao voo para ser fiéis a sua missão de mães, as umburanas também perseveram. São apegadas à terra nativa.

 

Provaram seu sal e se tornaram depositárias de sentimentos telúricos. Portanto, renunciam à liberdade para ser esteio do  mel, que, desde sempre,  adoça a boca e cura males dos homens.

 

Adepto da imaginação que percorre seus veios sinuosos e se dissemina  pela sua seiva, encarnamos suas vicissitudes. Identificamo-nos com estas resistentes árvores nordestinas, que se agigantam na generosidade,  que ignoram agruras do semiárido e que se afirmam como berços da fecundidade, mostrando-se fieis ao trabalho das abelhas que polinizam flores inexistentes, nidificam em seus paus ocos e produzem o mel, que mitiga a fome de homens carentes.

 

No sertão nordestino, a umburana de cambão tornou-se conhecida como "Pau de Abelha", celebrizada pela composição musical de Sivuca, que chama nossa atenção para a importancia desta arvore para a preservação das abelhas nativas.

 

A imburana ou umburana é árvore típica do semiárido nordestino, mas também pode ser vista no cerrado. Por suas carateristicas, presta-se para duas atividades aparentemente contrapostas. Uma voltada à preservação, outra que pode implicar na sua extinção.

 

Graças as suas cavidades, aos vãos do seu tronco e aos seus sulcos facilmente trabalháveis, torna-se bastante atraente para artesãos típicos da cultura regional: os santeiros . Durante muito tempo estes artesãos foram responsáveis pela predação da umburana.  Para produzir sua subsistencia, para dar curso a sua engenhosidade, aniquilavam  paus ocos, a si mesmos, a suas fantasias e a continuidade de seu trabalho.

 

Hoje, adquiriram consciência de que é possivel compatibilizar harmoniosamente duas atividades artesanais  por meio da  preservação da umburana, a apicultura e produção do imaginário.

 

Estes homens rudes do cariri trazem as marcas dos cortes provocados por goivas rusticas. Talhadas nas imagens de santos, nas cicatrizes em suas mãos e na vegetação do agreste.  Hoje, habilitam-se a manejar a umburana conscientes de que asseguram o desenvolvimento e  longevidade destas arvores, bem como do seu próprio trabalho.

 

Comportam-se como as abelhas.  Uma vez que seu trabalho não atende irredutíveis  exigências da vida mas também nos preenche com suas fantasias que se transubstanciam na imagem dos santos.

 

Por isto acreditamos que as duas atividades artesanais renascem como a seiva da umburana, como a esperança do povo desta árida região nordestina, que ressurge a cada estação de chuvas.  Como a água que chama a vida, as flores e as abelhas. Revitaliza nossas irrecusáveis raizes.  

 

Sólido como o voo da abelha, o povo do semiárido resiste como a umburana,  este pau oco, que, ao longo de séculos, subsiste às  adversidades materiais, aos rigores do tempo e  ao desprezo dos negociantes verdes.

 

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG

 

 


Data: 08/10/2013