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Artigo - Instituições Políticas e Democracia na América Latina: uma abordagem teórica

José Maria Nóbrega Jr.

 

 

Não obstante vários países latino-americanos terem transitado de regimes autoritários para regimes democráticos nas décadas de oitenta e noventa, resquícios autoritários e instituições híbridas permaneceram em muitos de seus contextos institucionais (MÉNDEZ, O´DONNELL e PINHEIRO, 2000). Averiguar os regimes contemporâneos dos países Latino-Americanos numa perspectiva comparada é necessário. Para isso, algumas teorias contemporâneas da Ciência Política são úteis para a fundamentação epistemológica da análise.

 

Dessa forma, inicio a discussão teórica com a definição de democracia cunhada por Mainwaring et al (2001: 645-46):

 

“A democracia é um regime político: (a) que promove eleições competitivas livres e limpas para o Legislativo e o Executivo; (b) que pressupõe uma cidadania adulta abrangente; (c) que protege as liberdades civis e os direitos políticos; (d) no qual os governos eleitos de fato governam e os militares estão sob controle civil. Essa descrição minimalista procedural contrasta com aquelas não-procedurais, como a de Bollen (1980; 1991), e com as procedurais submínimas, como as de Schumpeter (1947) e Przeworski et alii (2000)”.

 

Vejo esta definição como a mais adequada para avaliar empiricamente a performance das instituições políticas numa visão contemporânea e retrospectiva nos países latino-americanos. Outra informação importante a respeito da definição supracitada está na sua capacidade de absorver o mínimo exigido pelas constituições democráticas contemporâneas e das exigências regimentais do aparato dos direitos universais. Adiante, aponto o debate contemporâneo dentro da Teoria Minimalista sobre a Democracia.

 

As teorias minimalistas/procedimentais avaliam o papel das eleições, mas acrescenta a preocupação com certas liberdades civis (Schumpeter, 1984; Dahl, 2005). Mainwaring cita algumas preocupações que perpassam o papel das instituições políticas que passam pelo crivo eleitoral. Quando elenca critérios ligados às liberdades civis, não cita especificamente quais são essas liberdades. Ainda há preocupação no papel que os militares desempenham nos regimes políticos latino-americanos. Sendo assim, vou seguir uma linha de raciocínio baseada nos critérios elencados na definição supracitada.

 

Inicialmente, as eleições com tais características do componente liberal da democracia são imprescindíveis e indiscutíveis nas mais diversas esferas ideológicas. Contudo, o dispositivo eleitoral tem na sua base características elitistas (MIGUEL, 2001). Eleições são contempladas para avaliar a democracia desde o livro seminal de Schumpeter “Capitalismo, Socialismo e Democracia” que teve sua primeira edição em meados do século passado.

 

Weber (1999) será o ponto de partida do eleitoralismo na Teoria Democrática Contemporânea. Influenciou decisivamente na construção do conceito de democracia em Schumpeter (1984). Para Weber o aparelho burocrático do Estado seria o instrumento pelo qual a garantia da ordem liberal e da democracia seria efetivada. Evitar-se-ia, desta forma, a dominação de grupos ou facções de forma indeterminada no poder. Ao mesmo tempo o Parlamento evitaria que a burocracia tecnocrata eliminasse a vontade do povo[1]. No Parlamento encontrar-se-ia o elemento político do Estado. Esta instituição seria o freio que limitaria os “exageros” da burocracia e os desmandos do Executivo.

 

Weber afirmava que para a seleção dos atores políticos dentro das vias institucionais dos Poderes Executivo e do Legislativo era mister o processo de escolha eleitoral. Para a burocracia do Estado o processo seletivo seria de conhecimento técnico via processo meritocrático e não patrimonialista. Para o Parlamento o processo seria o de escolha dos governantes. Base para a teoria do Individualismo Metodológico schumpeteriano.

 

Weber definiu a democracia como sendo um mecanismo institucional de seleção de políticos competentes e capacitados. Para ele a democracia seria uma seleção “natural” de líderes competentes para a formação do parlamento. O povo, e sua vontade, por sua vez, ficariam restritos a escolher os seus governantes. No dizer de Schumpeter, o povo ficaria restrito a “produzir” o governo.

 

As teorias weberianas estruturaram a teoria democrática minimalista que tem início com Schumpeter. A visão da incompetência dos cidadãos médios para assuntos públicos e a necessidade de criação de partidos políticos no lugar da democracia direta, são pontos que perpassaram para a análise de Schumpeter. Os partidos políticos seriam estruturas institucionais burocratizadas que disputariam os votos dos cidadãos num amplo “mercado” competitivo e teriam também de racionalizar suas estratégias para lograrem êxito em seus intentos (PRZEWORSKI, 1999).

 

Schumpeter (1984) criticou a teoria clássica da democracia de forma a relevar falhas conceituais que não mais se adequavam à realidade do século XX. A Teoria Clássica da Democracia foi reavaliada por Rousseau no século XVIII. Como forma de governo onde o povo teria o poder de veto, a vontade geral seria o suprassumo do poder democrático daquela perspectiva teórica da democracia. Naquela época as estruturas sociais estavam sendo rompidas. O Estado nascente com as rupturas burguesas do século XVIII refletia as ideias e perspectivas do liberalismo político e econômico. A ideia de bem comum foi bastante fortalecida.

 

Já para Schumpeter o conceito de bem comum é vago. Inexequível e inodoro:

“Não existe algo que seja um bem comum unicamente determinado, sobre o qual todas as pessoas concordem ou sejam levadas a concordar através de argumentos racionais (...) para diferentes indivíduos e grupos, bem comum está fadado a significar diferentes coisas” (idem, pp. 314-15)

 

Schumpeter fez uma revisão da doutrina clássica de bases rousseaunianas e chegou à conclusão que a mesma não condiz a realidade da sociedade industrial do século XX. A doutrina clássica equivaleria ao credo medieval da religião. Mas a perpetuação da doutrina clássica estava garantida, graças ao discurso falacioso dos políticos mal intencionados:

 

“A revolução democrática significou o advento da liberdade e da decência, e o credo democrático significou um evangelho de razão e de melhorias. É certo que essa vantagem estava fadada a se perder e o abismo entre doutrina e prática da democracia estava destinado a ser descoberto. Mas o encanto da aurora demorou a desfazer-se. (...) Os políticos apreciam uma fraseologia que lisonjeie as massas e que ofereça excelente oportunidade não apenas de fugir à responsabilidade, mas também de esmagar os oponentes em nome do povo” (ibidem, 334).

 

O discurso intrínseco na doutrina clássica não passava de um “rito utópico” impraticável. Com as mudanças tecnológicas e estruturais pelas quais a sociedade passou no século XX, uma nova perspectiva de democracia tomou pulso. A democracia passaria a ser vista não como uma doutrina, ou um valor cultural. Seria, na verdade, um mecanismo executado através de um método, ou seja, o método democrático.

 

“Por democracia, Schumpeter queria se referir a um método político, ou seja, uma estrutura institucional para chegar a decisões políticas (legislativas e administrativas) investindo certos indivíduos com poder de decidir sobre todas as questões como consequências de sua dedicação bem sucedida à obtenção do voto popular” (HELD, 1987: 151).

 

Para o método democrático funcionar alguns critérios são fundamentais. Primeiro o calibre dos políticos deve ser alto, ou seja, alta qualificação profissional e intelectual das lideranças políticas. Em segundo lugar, a competição entre líderes (e partidos políticos) rivais deve ter lugar dentro de uma esfera relativamente restrita de questões políticas, vinculadas por consenso à direção geral da política nacional, ao que constitui um programa parlamentar razoável e a questões constitucionais gerais. Ou seja, o excesso de participação é danoso. Em terceiro lugar, um corpo burocrático bem treinado e independente, de “boa posição e tradição”, deve existir para ajudar os políticos em todos os aspectos da formulação e administração da política. O quarto critério é que deve existir um “autocontrole democrático”, ou seja, uma ampla concordância sobre o fato de que, por exemplo, coisas como a confusão entre os respectivos papéis dos eleitores e dos políticos, um excesso de críticas ao governo em todas as questões e comportamentos são indesejáveis. Cabe ao governo impor a si limites quando certas questões ultrapassarem sua esfera de conhecimento, algumas questões têm de ser entregues a especialistas. Por fim, o quinto critério no qual deve existir uma cultura capaz de tolerar diferenças de opinião (HELD, 1987: 160).

 

Voltando a definição desenvolvida por Mainwaring et al (2001) percebemos que os critérios a e b de sua definição são amplamente preenchidos pelos critérios que Schumpeter elencou para o sucesso de seu método democrático. Contudo, o próprio Mainwaring critica a perspectiva minimalista de Schumpeter, chamando-a de submínima, pelos seus critérios contemplarem apenas o viés político-eleitoral do mecanismo democrático[2].

 

Para Mainwaring e seus colaboradores uma definição de democracia “deve ser mínima, mas não submínima; deve incluir todos os aspectos essenciais da democracia, mas não propriedades que não sejam necessariamente características da democracia” (MAINWARING ET AL, 2001: 648). No caso dos regimes latino-americanos, avaliar empiricamente o nível dos direitos civis e políticos e o efetivo controle dos civis sobre suas Forças Armadas são aspectos mais que essenciais[3] (ZAVERUCHA, 2005).

 

Partindo agora para essa perspectiva: quanto dos direitos civis e políticos são ultrajados pelos governos latino-americanos e quanto avançou as relações entre as elites civis e militares nos países latino-americanos, são problemas/questões que precisam ser analisados de forma esmerada e com uma nova perspectiva teórica/epistemológica.

 

A classificação efetuada pelo trabalho de Mainwaring e seus colaboradores teve este propósito. Nela, os países foram classificados e codificados em uma escala tricotômica. Nessa escala os regimes políticos foram elencados como democracias, semidemocracias e autoritários. Diferente de outras escalas classificatórias de caráter dicotômico (PRZEWORSKI ET AL, 2000).

 

Avaliando os critérios c e d da definição de Mainwaring et al (2001), percebemos que estudar os regimes políticos democráticos e não democráticos numa perspectiva minimalista leva a fatores de observação bastante pertinentes. Os direitos civis e políticos – conceituando como as liberdades individuais básicas[4] -, são ultrajados em muitos contextos da América Latina.

 

As transições democráticas não foram suficientes para consolidar a democracia na América Latina. As eleições percorrem em quase todos os regimes políticos latino-americanos, contudo a maioria dos eleitores e não eleitores cidadãos desses países tem negado o Estado de Direito (PINHEIRO, 2000).

 

As democracias eleitorais não foram suficientes para instalar instituições democráticas nas diversas esferas dos governos/estados. Sob o verniz democrático que as eleições vislumbram no quadro político internacional, prevaleceu um sistema autoritário enraizado nas instituições do Estado responsáveis pelo controle da violência e do crime. Nas palavras de PINHEIRO (2000:11):

 

“Não há nenhuma dúvida de que o processo de consolidação democrática faz emergir e fortalecer os cinco campos que interagem entre si e se sustentam – a sociedade civil, a sociedade política, o Estado de Direito, o aparato estatal (um Estado ‘usável’), a sociedade econômica”.

 

Pinheiro (2000) fala de consolidação democrática ligada a qualidade do Estado de Direito. Qualidade esta vinculada a capacidade de garantir/preservar direitos individuais para ampla maioria da população. A violência constante aparece em seu texto como algo impensável em democracias consolidadas. Daí surge outra problemática em questão: violência descontrolada e práticas autoritárias das instituições coercitivas fragilizariam as democracias latino-americanas?

 

Mainwaring et al (2001) cunha o conceito de semidemocracia para os países que se caracterizam como regimes políticos híbridos, ou seja, que são compostos por instituições políticas que apresentam características de democracia e de autoritarismo[5]. Diferente de Ottaway (2003), que delineou o conceito de semiautoritarismo, o regime híbrido trabalhado por Mainwaring vislumbra sistemas políticos eleitorais com as características schumpeterianas, mas que resvalam em instituições políticas autoritárias em algumas conjunturas institucionais da formatação do estado. Isso me leva a apontar duas questões importantes: a primeira, o avanço democrático em torno das eleições e do sufrágio universal. A segunda, a incapacidade da maioria dos países latino-americanos em garantir direitos básicos de cidadania e de controlar efetivamente seus militares[6].

 

ZAVERUCHA (2005), NÓBREGA JR (2009; 2010a e 2010b) e NÓBREGA JR., ZAVERUCHA e ROCHA (2011) voltam-se para a análise do regime político brasileiro tendo como pano de fundo a teoria minimalista da democracia, mas não submínima, para avaliar teoricamente como os critérios c e d da definição de Mainwaring et al (2001) se enquadram no regime político brasileiro. Questões como o crescente descontrole dos homicídios, a continuidade das prerrogativas militares mesmo em democracia política, a violência policial, as práticas de tortura nos âmbitos dos presídios, polícias dividas em dois ciclos incompletos, militarização da segurança pública, são pontos de preocupação destes autores (ZAVERUCHA, 2000; 2004 e 2005; NÓBREGA JR, 2009; 2010A, 2010B e 2012; ZAVERUCHA, NÓBREGA JR e ROCHA, 2009; NÓBREGA JR, ZAVERUCHA e ROCHA, 2011).

Nóbrega Jr., Zaverucha e Rocha (2011) avaliaram a democracia brasileira a partir da capacidade do Estado em dirimir as mortes por agressão:

 

“No Brasil as taxas de homicídios alcançaram índices alarmantes. A maioria das análises em Ciência Política negligencia a relação entre violência e qualidade da democracia. O Index of Democracy do The Economist Unit (2008) avaliou o Brasil como sendo um país de elevada pontuação no indicador de liberdades civis. Levou em consideração aspectos dos direitos civis que ignoram os homicídios. Isso fez com que a conceituada revista inglesa chegasse à equivocada conclusão que o Brasil teria níveis de direitos civis acima de países como os Estados Unidos e o Reino Unido” (idem, 103).

 

Os autores analisaram a qualidade da democracia brasileira tendo como um de seus critérios avaliativos o indicador de homicídio. A variável dependente foi à qualidade da democracia e a variável independente, as taxas de morte por agressão em Pernambuco. Para medir-se a democracia avaliou-se o papel de suas instituições coercitivas na falta de contenção de homicídios praticados em Pernambuco. O resultado da análise inferiu serem, os altos números de homicídios, um óbice à consolidação da democracia no Brasil (IBIDEM, 2011:103).

 

No que tange ao controle civil sobre os militares, Stepan (1988) afirma que, quando do fim de um regime autoritário onde os militares tiveram papel de comando político, é de fundamental importância averiguar se o novo governo civil eleito realmente exerce efetivo controle sobre os militares, ou se estes ainda mantem suas prerrogativas. Tais elementos configuram-se em áreas onde, desafiados ou não, os militares assumem direito ou privilégio dentro da política (STEPAN, 1988: 93; NÓBREGA JR, 2009).

 

“No caso do Brasil, as relações entre civis e militares são consideradas de tutela amistosa, o que significa alta conivência civil na manutenção do comportamento autônomo militar, ou seja, preservação de enclaves autoritários dentro do aparelho do Estado” (ZAVERUCHA, 1994: 10).

 

Zaverucha (1994) vai demonstrar, através do uso competente da Teoria dos Jogos, como as relações civil-militares não avançaram para um efetivo controle civil no Brasil. E como na Argentina a tentativa de controle civil sobre os militares fracassou, não obstante Raul Alfonsín obter algum avanço no controle civil sobre os militares. Diferente do que ocorreu na Espanha, onde os civis “dobraram” os militares desde o processo transitório.

 

Zaverucha (2005) afirma a evidência do caso brasileiro como regime político híbrido que ocupa uma zona cinzenta entre a democracia e o autoritarismo. “Uma semidemocracia, na ausência de termo mais adequado” (idem, p. 49). O enclave analisado por ele está na incapacidade institucional da democracia brasileira avançar nas relações civil-militares desde a transição democrática. Na verdade, as relações teriam passado por retrocessos institucionais. Como exemplo as políticas militares, as agências de inteligência e o Ministério da Defesa seriam instituições sob controle majoritário das Forças Armadas.

 

Nóbrega Jr. (2010a) segue os passos da interpretação do hibridismo institucional característico da semidemocracia trabalhada por Mainwaring et al (2001) e Zaverucha (2005). Nóbrega aponta para a ausência de controle dos civis em aspectos institucionais da Constituição brasileira de 1988 – quanto ao controle institucional da lei e da ordem sob jugo das Forças Armadas, no seu artigo 142; e a falta de ajustamento legal do artigo 144 que trata da Segurança Pública, onde as polícias não tem regulamentado claramente as suas funções – o crescimento do efetivo policial militar em relação ao civil e ao problema do choque de competências em suas funções e do histórico antidemocrático do Ministério da Defesa e da Agência Brasileira de Inteligência. Todas essas instituições emperram a consolidação da democracia por desafiarem claramente direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros.

 

Os elementos teóricos e empíricos a respeito da democracia na América Latina precisam ser desdobrados em mais discussões teóricas. Para somar a análise das teorias democráticas contemporâneas, é relevante avaliar como as instituições se comportam e como seus atores políticos as dirigem.

 

 

José Maria Nóbrega Jr. é cientista político e professor do CDSA/UFCG, Doutor em Ciência Política pela UFPE e Pesquisador do INCT-InEAC



[1] Apesar de que o conceito de “vontade do povo” em Weber não ser levada em consideração, a não ser nas eleições.

[2] O que não anula a importância das instituições políticas formais, as quais são dirigidas por leis e regras que se coadunam à vertente democrática. Nos regimes políticos latino-americanos temos leis e regras que mudam constantemente de acordo com os dissabores e idiossincrasias dos governantes do momento. Passando por cima desse critério institucional e da própria harmonia entre os poderes. Vemos isso na Venezuela de Chavez, na Bolívia de Morales e na Argentina de Cristina Kitchner. Só para citar alguns exemplos.

[3] Controle civil democrático sobre os militares é “a capacidade das autoridades constituídas (Executivo, Legislativo e Judiciário) de limitar o comportamento autônomo das Forças Armadas, eliminando, por conseguinte, enclaves autoritários dentro do aparelho de Estado” (ZAVERUCHA, 1994: 09).

[4] Direito à vida, ir e vir, habeas corpus, ampla defesa, liberdade de expressão, liberdade religiosa etc.

[5] Forma de governo democrática (democracia representativa), mas sem estado de direito (falha na garantia dos direitos civis).

[6] Fragilidade do Estado democrático de direitos (unaccountable).


Data: 20/08/2013