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Artigo - Os deserdados, os inempregáveis e os descartáveis

Wagner Braga Batista

 

Uma das primeiras iniciativas do Papa Francisco foi visitar a ilha de Lampedusa.

Nesta localidade italiana concentram-se as atenções de milhares de migrantes, sem lugar e sem porto, dispersos no norte da África. Em frágeis embarcações, homens e mulheres, tentam escapar de adversas condições de vida. Partem da Tunísia para alcançar a Europa.

Em quinze anos mais do que vinte mil africanos perderam a vida no Mediterrâneo.

Contidos pelas políticas migratórias do velho mundo, não hesitam em se submeter aos riscos da travessia. Condenados da terra, sem condições de vida e de trabalho, não lhes resta outra opção. Lançam-se ao mar. Muitas vezes ficam à deriva até encontrar as praias rochosas de Lampedusa.  Estes são os afortunados, que subsistiram à travessia.

São os órfãos da globalização.

No final do século XX, a ideologia da globalização acenou com a dissolução das nacionalidades, o fim das fronteiras e dos limites territoriais. Professou a eliminação de barreiras alfandegárias para promover o comércio justo.

As praias de Lampedusa desmentem estes acenos. Desnudam estes falsos mitos.

Procuradas  pelos deserdados e  inempregáveis, revelam seu sentido desumanizador. Denunciam sua ação assimétrica que propiciou a franca mobilidade para o capital financeiro e restringiu direitos humanos. Deste modo, operações financeiras não encontraram  limites, no entanto o transito da força de trabalho foi coibido de todas as formas.

Qual o significado da visita do Papa Francisco à Lampedusa?

Este ato simbólico indica a reaproximação da Igreja com os excluídos, os pobres, os marginalizados, os deserdados, os sem porto, sem lugar e sem esperança.

Este amplo contingente que corresponde a mais de 1/3 da população mundial está entregue à própria sorte. Sua situação deplorável  espelha a lógica perversa, cumulativa, concentradora e excludente da economia de mercado.

Como objetos supérfluos produzidos pelo desperdício economico estão sujeitos ao descarte. Estejam onde estiverem.  Nos EUA e na Somália, em países centrais ou periféricos. Como entes descartáveis estão dispostos no chão de fábricas ou em suntuosas vitrines, lavrando solo infértil ou entregues às insalubres prateleiras de supermercados, expostos como criminosos em prontuários policiais ou como celebridades do momento em revistas de costumes. Seu destino é o mesmo: o descarte.

Como se fossem mercadorias, ajustam-se à lógica perversa e volátil da economia de mercado.

Manipulados à exaustão, subvertem suas necessidades, suas expectativas e seus sentimentos para se vender ou se trocar pelo preço imposto pelo mercado. Neste presumido negócio justo, como em toda barganha, quando um perde, o outro ganha. Uns acumulam riquezas, outros opróbrios, infortúnios e pobreza. Estes são os descartáveis.

Seres humanos e objetos se imiscuem e se confundem por meio destas relações desiguais acionadas por lógica degradante que transforma homens em objetos e os descarta como coisas abjetas.

Legitima o descarte, qualificando-os como imprestáveis para o trabalho: inempregáveis.

A restauração liberal produziu vasto repertório para legitimar sua lógica excludente. Por meio desta terminologia destituída de significado social e humano, fundamentou a crescente degradação da sociabilidade. Em nome desta lógica,  reduziu a vida humana às exigências da troca, dos negócios, das vantagens materiais e de processos econômicos cumulativos.

 Sob esta ótica quem não se habilita para exercer relações desiguais e promiscuas não está apto para o mercado. Para esta esfera restrita da vida social que nos condena a devorar uns aos outros, como lobos de nossos semelhantes.

Aqueles que não se habilitam a trabalhar nestas condições inóspitas e adversas não têm lugar na economia de mercado. São os inempregáveis.

Por meio deste artifício hediondo atribui a inabilitados e excluídos a responsabilidade pela sua exclusão social

Pois bem, Francisco viajou para Lampedusa.

Como ato inaugural de seu papado, cumpriu sua vocação jesuítica.

A simbologia desta ação é inequívoca. Adverte para a existência de falsos mitos que nos desumanizam.

Deplora a emulação do poder, do dinheiro, da riqueza e da compulsivo prestígio social que nos corrompem. Clama por humildade e honestidade. Concita ao diálogo e a edificante relacionamento com excluídos.

Aos olhos de quem que não se identifica plenamente com a doutrina da igreja católica este gesto de generosidade é convidativo.

Representa uma retomada de propósitos humanitários por esta entidade que se apresentou universalmente como mãe dos excluídos.

Em suas preleções desperta a consciência cristã para flagrantes injustiças e desigualdades sociais.

Numa destas preleções mencionou a realidade de dois países europeus com elevado índice de desemprego. Acrescentou que nestes países havia  44% e 50% de jovens desempregados. Concluiu evidenciando a fragilidade do pragmatismo econômico. Da economia que despreza sua juventude e renega a sociedade. Que não tem compromisso com o futuro próximo.

A sua solidariedade aos deserdados e “aos mortos que ninguém chora” é um ato dotado de expressiva simbologia.

Volta o olhar do mundo para os mais de 20 mil migrantes tragados pelas águas do Mediterrâneo.

 Soa como um mea culpa da Igreja , omissa frente aos dramas de migrantes e deserdados.

Assinala que entre a indiferença egoística e a violência desregrada, a justiça social ainda é a melhor opção. Torna-se torna possível por meio da democracia e do diálogo entre diferentes.

Está claro. O novo papa, defensor da ortodoxia da igreja católica apostólica romana, adotou irreversível opção preferencial pelos pobres.

Invocou os votos de Francisco de Assis, que renunciou à riqueza de sua família para vivenciar a enriquecedora experiência da pobreza.

Como Francisco de Assis, ensina-nos a perceber que a beleza dos lírios inevitavelmente brota da lama.

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG


Data: 30/07/2013