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Artigo - A soberania compartilhada e o privilégio de espiar a intimidade do vizinho

Wagner Braga Batista

 

 

No auge da restauração liberal no Brasil, o Príncipe dos Sociológos desqualificava seus interlocutores.

 Chamava-os de neobobos e de atrasados.  

Do alto de sua soberba, proclamava que seus críticos eram portadores da sindrome da fracassomania. Deste modo, alinhava seu renovado repertório conceitual ao discurso do primeiro mundo.

Anunciava, também, que o país caminhava em direção a irreversíveis patamares.

Os padrões de vida e de consumo seriam nivelados por cima. Espelhados em Londres, Nova Iorque, Paris  e Milão.

 Para efetivar esta profecia teria que derrotar um monstro contemporâneo,  chamado Estado do Bem Estar, que consumia energias empreendedoras, inibia pulsões competitivas e alimentava a vagabundagem com suas políticas públicas.

Com uma das mãos beneficiava o capital financeiro, operações especulativas e investimentos improdutivos, com a  outra eliminava direitos sociais e constrangia o mundo do trabalho. Segundo ele, abrigo de ineptos e fonte do ócio.

Deste modo, intimidava movimentos sociais, sindicatos de trabalhadores e entidades populares.

Com seus alibis e efetivos instrumentos de coerção, a restauração liberal no Brasil, fruto da coalisão de social-democratas e conservadores armara suas arapucas para conter os neobobos. Todos nós.

Com lingua e garras afiadas, acusavam opositores de se insurgir contra a modernidade.

Incorporavam aos métodos anglo-saxões de Margareth Teatcher e Ronald Reagan a prepotência do coronelismo tupiniquim :

- Contra vocês existem leis, parlamentares amigos, novos consensos, gavetas para arquivar processos, juizes para criminalizar suas ações e a imprensa marrom para atiçar a polícia.

A abertura economica, o fim das barreiras protecionistas, o comércio justo, a minimização do Estado, a privatização do patrimônio público, a mercantilização de direitos, entre outras medidas, proporcionariam equidade.

 Diga-se, a equidade rasteira. Resultante da subtração de direitos do povo brasileiro, imposta pela supremacia política norteamericana, pela militarização de relações diplomáticas, pela chantagem na imposição de blocos economicos, pela integração subordinada à economia de países centrais e pela anuência ao consenso passivo, desenhado pelo Grande Irmão.  

Por meio dele, seríamos beneficiados pela harmoniosa e contínua expansão do mercado global,impulsionada pela dinâmica da economia norteamericana.

O Grande Irmão anunciava aos quatro ventos a desregulamentação de economias periféricas, a formação de um novo bloco economico voltado à promoção da  american way life, a ALCA- Área de Livre Comércio das Américas

Porém, haveria um preço a pagar.

Teriamos que nos submeter aos seus cuidados, a uma nova hegemonia, que reproduzia o velho preceito: o preço da liberdade é a eterna vigilancia.

Por isto, vigiar seria preciso. Full time.

E assim se constituiu a ideologia da soberania compartilhada e da necessária vigilancia.

Não surgiu, como vimos, do nada. Alimentou-se de imposições ditadas pela restauração liberal. Suprimiu veleidades históricas, politicas e culturais endógenas para decalcar diretrizes externas e exigências do processo de financeirização da economia de países periféricos, entre os quais o Brazil.

Meus caros amigos, neobobos como eu, a restauração liberal não é fruto de forças aleatórias do mercado. É parte de uma ideologia que se propôs a legitimar novas estruturas de poder, bem como, processos de produção e de distribuição de riquezas numa nova conjuntura.  Empreendida por forças ultra-conservadoras dizia-se portadora da modernização e de uma nova ordem mundial.

A instrumentalidade desta intervenção consistiu em submeter a reprodução da força de trabalho à lógica da acumulação de capital em condições extramente excludentes e perversas. Nos EUA, refletiram-se em políticas que desoneraram investimentos privados e financiaram investimentos improdutivos, a exemplo da escalada armamentista.

Implicaram na  reformulação do estatuto dos direitos humanos no plano internacional.

As pressões para estabelecer novas formas de alinhamento estratégico compeliram governos periféricos a admitir intervenções inconcebíveis em suas nações.

A mercê de diretrizes e de decisões  políticas e estratégicas de agências financeiras multilaterais, economias periféricas ficaram constrangidas por pressões da dívida externa, submetidas à ganância de grandes corporações transnacionais, de interesses antagonicos ao da ampla maioria do povo brasileiro.

Sob o abrigo de políticas ditadas por estas agências financeiras, governos de países periféricos assumem o compartilhamento de decisões estratégicas.

A soft hegemony – soberania leve ou compartilhada- será exercitada neste contexto. Graças à leniência de governos neoliberais estebelecem-se relações obscuras e promíscuas entre altos escalões de governos e executivos de agências multilaterais.

Esta relação pode ser expressa pela elaboração de nosso ex-embaixador em Washington:

 

No plano político, além da superação do conceito de classe social como força motora do processo, perderam importância questões tradicionais do poder associadas ao conceito de Estado-nação. Ao governo se coloca a questão de administrar uma despolarização do poder em dois sentidos: descentralização interna e soberania compartilhada externa. É o novo Estado democrático.. [1]   

 

Este conceito esdrúxulo surgiu no contexto da formulação dos acordos para a  constituição da Área de Livre Comércio das Américas- ALCA. Tornava-se expressão da diluição de fronteiras políticas, econômicas e territoriais proposta pelos mentores da “terceira via”, entre os quais destacava-se Anthony Giddens. Pasteurizava visiveis conflitos internacionais em nome do  consenso forjado ( Noam Chomsky), sob a égide da governabilidade liberal.

Hegemônico, em escala mundial, o liberalismo não possuia uma única conformação. Procurava contemplar e acomodar múltiplos mercados, as particularidades das economias nacionais ou regionais à dinamica da economia global centralizada nos EUA. Com este propósito fixou diretrizes políticas e econômicas uniformes, válidas para países periféricos nos quais exerceria novas formas de dominação.

A soberania compartilhada e a soft hegemony contribuem para que políticas desenhadas à luz de uma mesma matriz ideológica se difundissem e fossem absorvidas passivamente.

Retornando à operosidade do Grande Irmão. Substituiu a propaganda e a visibilidade pela espionagem. Transformou a vigilancia na alma do seu negócio.

Num plano, o Consenso de Washington desempenhava seu papel. Porém seria necessário seguir a risca suas diretrizes, sem margens de erro e sem infidelidades.

Portanto, em outro plano, sem transparecer teria que colocar o olho na alcova.

Neste quadro, a espionagem se reveste de novo significado: salvaguarda da democracia e da liberdade.

No Brasil, funcionários de carreira do Itamarati, que questionaram este alinhamento foram duramente advertidos. Samuel Pinheiro Guimarães foi exonerado do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais do Itamarati.

Passados alguns anos, podemos bater olho a olho com o Grande Irmão.

O jornal inglês, The Guardian, por meio de depoimentos de ex-integrante da Agência de Segurança Nacional – NSA, dos EUA, Edward Snowden, expôs o que intuitivamente já imaginávamos.

Com extraordinária riqueza de detalhes evidenciou como a agência de segurança norteamericana, consorciada com reconhecidas corporações, entre as quais a Microsoft, invadiu a comunicação de governos, instituições, públicas, empresas e indiduos para obter informações confidenciais.

Segundo Snowden, a Microsoft teria aberto para a NSA seu sistema de criptografia, que protege mensagens enviadas pelo correio eletrônico, via Outlook e Hotmail, viabilizando o acesso a informações de toda natureza. Procedimento identico foi adotado em 600 milhões de usuarios do Skype, adquirido pela Microsoft, em 2011, permitindo o compartilhamento de informações com o sistema Prism, um dos principais programas de espionagem norteamericanos.

Com este alcance o Grande Irmão, personagem de George Orwell,  adquiriu a prerrogativa da onipotência e da onipresença, não apenas na periferia, mas também em escala mundial. Impos-se como protetor da ordem liberal, da segurança do capital e da falta de privacidade de todos nós, os neobobos, que deveríamos nos submeter aos seus designios.

A espionagem praticada pela agencia norteamericana é analisada por prismas diversos. Para as vestais do catastrofismo,  trata-se de manobra de governos em crise, afoitos para identificar um inimigo providencial. Contudo, para articulistas independendentes enquadra-se numa típica violação da soberania nacional.

Mas que soberania ?

Não nos tornáramos adeptos da soberania compartilhada?

Portanto, não há razão para melindres.

Pouco importa se ainda nos querem ver de calças arriadas ou em cenas íntimas de conúbio com parceiros políticos não declarados.

São cenas que se vulgarizaram no universo político.

Contudo, no renitente imaginário ultraliberal, continuam sendo apenas estímulos para que exercitemos com maior proeza, competencia, capacidade empreendedora e competitividade a nossa permissiva intimidade.

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG

 



[1] Rubens Barbosa A “terceira via” de Tony Blair, Folha de São Paulo, 1o Caderno, 19 de maio de 1998, p. 3


Data: 19/07/2013