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Artigo - Aos que vierem depois....

Wagner Braga Batista

 

 

Aos que vierem depois de nós

Bertolt Brecht


Tradução de Manuel Bandeira


Realmente, vivemos muito sombrios!
A inocência é loucura. Uma fronte sem rugas
denota insensibilidade. Aquele que ri
ainda não recebeu a terrível notícia
que está para chegar.

Que tempos são estes, em que
é quase um delito
falar de coisas inocentes.
Pois implica silenciar tantos horrores!
Esse que cruza tranqüilamente a rua
não poderá jamais ser encontrado
pelos amigos que precisam de ajuda?

É certo: ganho o meu pão ainda,
Mas acreditai-me: é pura casualidade.

 

 

 

Dia 28 de junho do corrente,  um fato significativo pode ser adicionado à História da UFCG.

Por iniciativa do Prof Luciano Mendonça atribui-se à sala de reuniões dos Orgãos de Deliberação Superiores o nome de um estudante: João Roberto Borges de Souza.

Quem é João Roberto. Trata-se de um estudante, como tantos outros que não se curvaram, nem se silenciaram frente ao regime  que se instalou no Brasil após o golpe cívico-militar de 1964.

A iniciativa poderia contemplar a memória de outros nomes de companheiros mortos e desaparecidos, que ainda precisam ser resgatados.  Em sua simplicidade esta justa homenagem é abrangente em todos sentidos. Restaura  valores indispensáveis à universidade brasileira. Valores que precisam ser exercitados e consolidados, no dia a dia, em todas instituições públicas. Inoca a cultura da responsabilidade, do compromisso, da probidade, da coerencia no exercício das nossas atividades comesinhas. Portanto à homenagem a João Roberto não nos remete apenas ao passado recente, mas ao cotidiano da universidae e da educação pública. À relação necessária entre o compromisso com o serviço público e  o zelo com nossa prática.

Sem sombra de dúvida, João Roberto, como tantos outros estudantes, estão sendo lembrados e vivificados pelos seus  exemplos de vida.

Este ato, realizado em presença de dois de seus irmãos, de sua ex-companheira, Socorro Fragoso, hoje deputada federal pelo Estado de Minas Gerais, de integrantes da Comissão da Verdade da Paraíba, de professores, de estudantes e ex-militantes de movimentos sociais, igualmente atingidos por medidas repressivas da ditadura militar,  fez jus à atuação de todos que lutaram em defesa das liberdades democráticas em nosso país.

Retoma iniciativas adotadas pela UFPB, que pouco repercutiram em seus campi do interior.

Convém rememorar que, em 1999, o Conselho Universitário da UFPB revogou os atos execepcionais praticados durante o regime militar e homenageou todos aqueles seus integrantes atingidos por medidas arbitrárias.

Portanto, a iniciativa do Prof Luciano é louvável e pertinente. Traz a luz fatos deploráveis praticados dentro e fora da universidade. Incita-nos a identificar e coibir expedientes anti-democráticos, ainda usuais nos dias de hoje.

Denuncia métodos e condutas incompatíveis com a convivencia acadêmica, a exemplo de sutis mecanismos de coerção, de cooptação e de assédio moral. Sinaliza e estimula ações mais consoantes com a função socializadora da universidade e da educação.

Isto porque se afirmou o pressuposto de que não podemos mutilar a História, silenciar ante evidências constrangedoras e permitir que fatos ignominiosos se repitam no futuro próximo.

 A História e os relatos históricos são portadores de forças motrizes que transformam a realidade e a todos nós. Induzem a consciência e a pratica social. Portanto, não devem ser subtraídos do nosso horizonte, como cicatrizes que procuramos esconder.

O papel desvelador da História nos indica caminhos e nos situa em terrenos mais sedimentados, mais favoráveis a intervenções civilizadoras. Deste modo, sinaliza cenários futuros mais promissores.

A história é a permanente luta da memória contra o esquecimento. Portanto, ensina-nos a relevar, porém também nos estimula a não esquecer o passado

Para novas gerações de estudantes, que se fizeram presentes na homenagem a João Roberto, talvez seja dificil entender a aspereza daquele contexto.

Além dos relatos, feitos na oportunidade, uma infinidade de denuncias assoma. Reforça a urgente  formação de Comissões da Verdade, que apure de modo criterioso, sistemático e justo fatos sonegados à época e hoje tornados de conhecimento público.

Há outros registros que devem ser feitos, além das mortes e desaparecimento de presos políticos. A tortura a presos comuns ainda é uma prática corrente em nosso país.

Outras experiências traumáticas, também devem ser evidenciadas. Referem-se a companheiros que premidos pela dor e pela angústia não suportaram as consequencias dos flagelos que lhes foram aplicados. É preciso recompor estas estorias e dignificar suas trajetórias como dolorosas e insuportaveis experiências de vida.

Voltando ao caso da UFPB.

É preciso ressaltar alguns momentos deste processo. Inicialmente a interferência na vida academica da UFPB, após o golpe militar de 1964, que destituiu o Reitor, Prof. Mário Porto, e nomeou o Prof. Guillardo Martins como interventor para que permanecesse nesta condição até o ano de 1971.

Durante estes anos, o pais e a universidade enfrentaram o recrudescimento da repressão e da censura, que além de torturas, mortes e desparecimentos de presos políticos, provocou o afastamento sumário de pesquisadores,  professores, de servidores técnico-administrativos e de estudantes, bem como a adoção de diversas formas de punição subliminares.

Após o Ato Instituciona nº 5, em 13 de dezembro de 1968, adveio o famigerado Decreto-lei 477, em fevereiro de 1969, voltado à punição de professores, estudantes e servidores de instituições públicas de ensino . De modo imediato, sem direito de defesa, 81 estudantes foram afastados da UFPB sem que pudessem efetuar suas matrículas por dois anos.

No início da década de 1980, estes processos foram recuperados em dossiês denominados os livros negros da universidade. A exemplo do que ocorreu na USP, a UFPB  também registrou  estas deploráveis passagens no livro intitulado “O caso Jomard Muniz de Brito – Um capítulo do livro negro da UFPB”, de autoria de Rubens Pinto Lyra,

Há poucos dias, participando de debate sobre direitos humanos, relembramos o quanto foram cruéis estes tempos de falsa prosperidade economica. A população brasileira foi brutalizada  por instrumentos de concentração de renda, de exclusão social e de coerção política que  calavam críticos e opoistores do regime. Tornamo-nos reféns de cultura reificadora que desprezou valores irredutíveis em sociedades contemporâneas.

O regime militar, uma vez submetido à pressão das lutas democráticas, recrudesceu a repressão com a edição do Ato Institucional nº 5. Explorou habilmente indicadores economicos númericos para criar o mito do Milagre Brasileiro. Valeu-se de estratégias publicitárias, montadas pela Assessoria Especial de Relações Públicas- AERP, organismo afeto à ao ditador de plantão, que para a conquista da Copa do Mundo de 1970, exaltar a xenofobia 

e exacerbar o ufanismo cego por meio de campanha que tinha como lema: Brasil,  ame-o ou deixe-o. . 

Neste contexto, parcela da juventude, demonstrando notável desprendimento engajou-se numa luta política desigual e desumanizadora. Foi arrebatada por processo de enrijecimento que mutilou a consciência sobre a importancia dos direitos humanos.

Esta luta implicou em difícil mimetismo que encobriu o sentido humanitário da luta política sob o manto de ações embrutecedoras.

Esta juventude não conseguiu consubstanciar valores e práticas edificantes, a defesa intransigente de direitos humanos, em ações politicas que adquiriam conotoção diversa da que presumiam. Sua extraordinaria generosidade política foi distorcida. Ações em defesa das liberdades políticas foram qualificadas como atos de terrorismo.  Deste modo foram assimiladas pela opinião pública submetida à manipulação da imprensa sob censura.

Esta luta desigual lançou gerações num embate encarnecido no qual a consciência política ficou reduzida a migalhas. Rebaixada a enfrentamentos com sofistticados aparatos repressivos à busca de subsistência em contexto político extremamente adverso. A pretensa resistência armada ao regime militar reduziu-se a ação voluntariosa de muito poucos abnegados militantes. Limitar-se-se-ia a ações residuais, esporádicas que visavam a obtenção de resultados imediatos e de curto alcance político.

Este pragmatismo cego, dificultou a perceção do amplo horizonte da luta em defesa de direitos humanos, subtraídos pelo regime de força. Destituiu estas ações localizadas do sentido  humanitário da luta política contra o regime de exceção. Não atingiu o cerne do modelo autoritário, principalmente suas politicas concentradoras e excludentes que fomentaram a corrupção, geraram fortunas ilicitas, aliciaram a classe média e subtrairam direitos elementares de trabalhadores, a exemplo da estabilidade no emprego, de salários dignos, tendo como conseqüencia a marginalização de amplos contingente da população condenados à pobreza e à miséria. 

Há uma página obscura neste deplorável episódio político da nossa História. Para muitos brasileiros oponentes do regime militar restaram poucas opções além do enfrentamento político em condições desiguais, conviver com a brutalidade da repressão ou sublimá-lo, implicando na renúncia a convicções politicas, no enlouquecimento, no apelo às drogas ou  no suicídio. Devemos nos lembrar de Frei Tito,  de Maria Auxiliadora Lara Barcelos, de Lauro, entre outros, que frente a incapacidade de suportar os tormentos deixados pela tortura puseram fim à própria vida.

A sociedade e a universidade brasileira sofreram inegáveis retrocessos políticos, culturais e educacionais.

Recentemente, surgiram evidências, de que duas instituições  universitárias foram utilizadas como locais de interrogatórios, de sevicias e de coerção de oponentes ao regime militar, a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e a Universidade Federal de Pernanbuco.

Assessorias de Segurança e Informação- ASISs, organismos apetrechados para a prática da delação,  continuaram ativas em instituições federais de ensino superior até o advento da Nova República.

Estes são alguns fatos que vêm à tona no momento em se faz jus à memória de João Roberto e

se deplora a trajetória deste  interventor,  que coonestou com o regime autoritário e não se eximiu de colocar em prática  suas medidas discricionárias. 

 

 

A aposição do nome de João Roberto, em placa na entrada do auditório, que abrigou tantas ações expressivas em pról da democratização e da educação pública, é deveras significativa para todos nós.

Neste recinto, em 3 de outubro de 1978, em presença de 81 de professores, foi fundado nosso sindicato, a ADUFPB-CG, primeira entidade de representação de docentes do ensino superior na Paraíba.

O nome de João Roberto faz jus aos principicios originais deste sindicato que se afirmou na luta em prol da democratização da sociedade e da universidade, das liberdades políticas, da reintegração de pesquisadores e de professores afastados por medidas de exceção, bem como pela anistia ampla, geral e irrestrita.

Discorrer sobre farsa da anista restrita e conivente com praticantes de crimes hediondos, tornou-se uma intervenção obrigatória.

A Lei nº 6.683, conhecida como Lei da Anistia, sancionada em  28 de agosto de 1979, durante a vigência do regime militar, foi exercicio de autolegitimação do poder ilegitimo.

Associou a tortura e os assassinatos de presos políticos, praticados por agentes do Estado, a ações da luta armada, realizadas por opositores o regime militar, tipificano-as como crimes conexos. Contemplou agentes da repressão investidos do poder de coerção do Estado e munidos de instrumentos fornecidos por governos ilegitimos, e desqualificou opositores destituidos de condições minimas e do necessário amparo legal para defender direitos subtraídos pelo regime de execção.

É oportuno ressaltar, que neste embate desigual houve ações questionáveis, de parte a parte. Contudo, a natureza, as características e  o sentido destas ações não podem ser equiparados.

A lei da anistia contemplou agentes do Estado, sequazes a serviço de regime político e de governos ilegitimos ..  Mostrou-se condescendente com praticantes de crimes hediondos, a exemplo, de assassinatos, sequestros e torturas, negados pelo regime militar. Manteve a condenação de vários participantes de ações armadas, julgados pelos tribunais da ditadura, acusados por homicidios.  Mesmo, após promulgada, a lei da anistia lei manteve presos vários  oponentes políticos aos quais foi imputado o crime de sangue.

Em 2010, por maioria de votos, o Supremo Tribunal Federal considerou válido este dispositivo da lei da anistia. Contudo, esta sentença descumpre tratados internacionais sobre direitos humanos, assinados pelo Brasil, fere decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que rejeita a tese da anistia irrestrita, bem como do Direito Internacional que considera crimes hediondos imprescritíveis. Esta posição é endossa pela Ordem dos Advogados do Brasil.

A justa homenagem prestada a João Roberto e a todos que se insurgiram contra o regime militar deve ser celebrada por todos professores, servidores técnico-administrativos e estudantes que defendem as liberdades democráticas e honram a memória desta instituição universitária.

 

 

Dedicado a Lamarck, Ramirez e Jorjão

 

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG


Data: 18/07/2013