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Artigo - A radicalização da classe média

Wagner Braga Batista

 

 

Las casitas del barrio alto  

Victor Jara[1]

 

Las casitas del barrio alto
con rejas y antejardín,
una preciosa entrada de autos
esperando un Peugeot.

Hay rosadas, verdecitas,
blanquitas y celestitas,
las casitas del barrio alto
todas hechas con recipol.

Y las gentes de las casitas
se sonríen y se visitan.
Van juntitos al supermarket
y todos tienen un televisor.

Hay dentistas, comerciantes,
latifundistas y traficantes,
abogados y rentistas
y todos visten polycron.

Juegan bridge, toman martini-dry
y los niños son rubiecitos
y con otros rubiecitos
van juntitos al colegio hay!

Y el hijito de su papi
luego va a la universidad
comenzando su problemática
y la intríngulis social.

Fuma pitillos en Austin mini,
juega con bombas y con política,
asesina generales,
y es un gángster de la sedición.

 

De repente a classe média, que ascendera abruptamente da periferia das grandes cidades a reduzidos e disputados poleiros, equipados com janelas, garagens, elevadores e portarias suntuosas em bairros centrais das grandes cidades, sente-se incomodada.

Indignada por ter se empenhado para transitar de rodoviárias interrurbanas para aeroportos internacionais e, agora, dividir assentos e compartilhar sanitários de aeronaves com o Zé Povinho.

Raivosa, porque esta gente miúda rouba-lhe a cena em novelas, em supermercados e revistas de costumes. Retira das prateleiras produtos superflúos que lhes eram destinados para forjar identidade grotesca e notabilizar sua vulgaridade.

De repente, classes subalternas, competem com seus filhos. Retiram-lhes o privilégio de estudar. Sob a pressão de extorsivas mensalidades do ensino superior privado, a classe média mostra-se insatisfeita ao assistir rebentos da população marginalizada aportarem de mala e cuia, invadindo universidades públicas.

Afinal, a classe média brasileira trilhou sinuoso caminho para subir na vida. Depois de tantos anos de subserviência, de omisão, de bajulação, de negação de valores societários, vê-se em situação equivalente às depreciadas camadas subalternas.

Será que todos estes vexames valeram à pena?

O humor da classe média oscila de acordo com a possibilidade de ascensão social.

Quer subir na vida, mas não quer se equiparar à população que emerge da pobreza. Não quer se ver no mesmo patamar dos de baixo. Desta gente miúda que surge de compulsórias migrações, que desce de moradias inseguras nas encostas de morros, que desponta de cortiços insalubres à busca de melhores condições de vida.

Limitada à perspectiva de melhoria dos padrões de consumo e de ascensão social, nas pretensões das camadas médias, não há espaço para politicas distributivas. Equidade soa como ameaça, nivela suas minguadas conquistas com direitos sociais extensivos a outros segmentos da população.

Enquanto está premida, seja pelo arrocho salárial e pelo rebaixamento de seus padrões de vida, não se constrange em se aliar às camadas subalternas. Renega esta oportuna aproximação, no momento em que se vê favorecida por políticas excludentes aplicadas aos trabalhadores de baixa renda, aos pobres e aos miseráveis.

Por isto as camadas médias, oscilam entre aproximações eventuais com a direita e a esquerda.

As manifestções públicas que ocorrem em todo Brasil, com sua diversidade e complexidade, oferece um campo vasto para as oscilações políticas das camadas médias. Permite-nos enxergá-las sob diferentes prismas.

Entre tantos outros, há dois vieses preocupantes.

Um olhar revela a tentativa de conferir precedência a reivindicações restritivas, que deslocam demandas mais prementes da população carente. Estas reivindicações corporativas investem contra direitos sociais. Possuem viés exclusivista e perverso.

O ato unitário do dia 11 de julho, inibiu esta tendência.

Outro olhar, mais aguçado, procura identificar os rumos destas oscilações. Suscita indagações, muito oportunas, sobre possiveis motivações e desdobramentos políticos deste caudal que arrebata desde militantes de movimentos sociais até  flaneurs de toda ordem.

Alcança também aventureiros de esquerda e de direita, bem como diletantes que convertem a ação politica num esporte de risco. Transformam manifestações coletivas em espaço propício para o arrojo e peripécias individuais à busca de descargas de adrenalina.

A motivação central é a aventura, o voluntarismo e o confronto desregrado. Não pensam nos ônus que tais procedimentos acarrentam à dimensão coletiva e pública destas manifestações.

A atuação de alguns novos atores presentes nas manifestações de rua chama a atenção. Entre eles, os bandos de jóvens de classe média que, paramentados de radicais new look, exercitam extravagância e furor, sob o signo da rebeldia incontida e indiscriminada.

Investem indistintamente contra tudo e contra todos.

De modo provocativo, atentam contra o convívio democrático, indispensável em manifestações públicas em defesa de direitos sociais. Atacam outros manifestantes e deixam suas marcas deletérias, destruindo o que estiver ao seu alcance.

È oportuno que se diga, que apesar da truculência policial em várias manifestações, no Rio de Janeiro policilias, foram provovocados, confrontados e agredidos por estes bandos, conforme atestam observadores do Ministério Público e da OAB.

Uma nova vertente do anarco-niilismo, apresenta-se com roupagem e bandeiras negras, diz-se anticapitalista, como também se disseram os camisa-negras do fascismo italiano e seus congeneres alemães.

Estes novos rebeldes, presumidamente sem causa, são portadores não apenas de bombas atiradas contra a polícia e integrantes de correntes de esquerda. Talvez inconscientemente, portam a causa da irascibilidade e da irracional disseminação violência. Fazem escola, a exemplo dos bandos de sequazes, de lumpens e de criminosos que constituíram o núcleo das milicias nazista.

Há, entre eles, rapazes das “boas familias”, frequentadores da Mackenzie, da USP, da PUC, dos casarões dos jardins paulistas e de condominios luxuosos na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, autodenominados black blocs.

Associados a agrupamentos declaradamente de direita, a pitboys, a praticantes de lutas marciais e a narcotraficantes utilizam-se do vandalismo para abrir caminho para a destruição de patrimônio público e o subsequente saque de seus bens.  

São correias de transmissão da direita silenciosa, que capitaliza estes incidentes para promover a política de terra arrasada. Catastrofistas, que, na falta de horizontes políticos inclusivos, alimentam-se da expectativa do caos.

São  liberais e conservadores, que se beneficiam desta inversão de polaridades.

Hoje, em sua desfaçatez, confortavelmente se apresentam como vítimas das suas políticas excludentes, concentradoras e corrosivas, praticadas no passado recente.

A canção de Vitor Jarra descreve, com acérrima ironia e contundência, a trajetória desta gente. Desenha o rumo de parcela da classe média chilena diante do avanço da Unidade Popular, da eleição de Salvador Allende e das tentativas de golpe de direita, que precederam seu assassinato em 1973.

O golpe ocorreu no primeiro 11 de setembro fatídico, auspicioso para a politica externa e empresas de prospecção mineral e de telefonia norteamericanas, trágico para toda a América Latina.

Antecipa a disjunção radical nas camadas médias.

Parcela reduzida de profissionais liberais e estudantes radicaliza à esquerda, enquanto o grosso da classe média cerra fleiras com a Democracia Cristã e com a direita conservadora, que dará sustentação política ao golpe de Estado.

Depois, em sintonia com que se verificava em todo o continente, sobreveio o terror e o retrocesso da ditadura de Pinochet. O Chile transformou-se no laboratório das politicas ultraliberais, sob a batuta de Milton Fridman.

Instaurou o capitalismo desregulamentado, a minimização das funções públicas do Estado, a desoneração do capital, escancarou as portas do país para investimentos externos, anulou a reforma agrária, desnacionalizou a economia, ofereceu vantagens competitivas que implicaram na eliminação de conquistas do povo chileno.

Consorciando o regime de força  com politicas liberais, sepultou a democracia e direitos sociais, Converteu a economia chilena no modelo adotado pela restauração liberal que iria se irradiar para o mundo na década de 1980.

No Brasil, o governo Collor deu início a esta escalada que teve prosseguimento durante os anos FHC.

Os impactos perversos das políticas liberais ainda são sentidos na atualidade.

Voltando à radicalização da direita, a música de Vitor Jara, reporta-se ao assassinato de generais.  

Para refrescar a memória, não foram esquerdistas que praticaram aventuras sediciosas, que assassinaram generais. Entre eles, o General Renê Schneider, que viabilizou a posse de Salvador Allende, em 1970, no Chile. Que mataram o General Pratts, em 1975.

O assassinato de Scheneider, articulado pela CIA, encontrou respaldo e se configurou graças à direita chilena, principalmente a organização Pátria e Liberdade.

Foi arquitetado pelo projeto Fulbet ou Two Tracks, duas vias, de autoria da CIA. Consistia de duas estratégias. Uma acionada por meio de ofensiva diplomática norteamericana, fomentando o descrédito e induzindo a relações externas desfavoráveis ao Chile. Outra por meio da desestabilização da economia, de ações terroristas que envolviam sequestros e assassinatos de personalidades identificadas com o governo de Allende. 

Por autorização expressa de Henry Kissinger, Secretário de Estado do governo norteamericano, como apurou Comissão do Senado, em 1975, foram fornecidas as submetralhadoras utilizadas no assassinato do general Scheneider.

O bando que praticou este ato foi remunerado com 35 mil dolares pela CIA.. Assim como o congestionamento e a crise de abastecimento da economia popular por conta da paralisação de caminhoneiros, igualmente financiandos pela agencia norteamericana.

Pouco antes de ser assassinado, Allende prestou um último tributo ao General Scheneider ao afirmar que sua morte se deveu à defesa de instituições democráticas, bem como a princípios constitucionais, que todo militar jura respeitar e obedecer.

Não podemos ignorar a História, nem tampouco o que ocorre no momento presente no país

A abrangência das manifestações públicas confere vigor às criticas dirigidas a governos, parlamentares e ao judiciário. Sua importância advém da demonstração massiva de descontentamento  com instituições públicas, com políticas de governo, com a corrupção e com a manipulação efetuação pela grande imprensa. Cobram o aprofundamento da democracia e a ampliação de direitos sociais

Não podemos permitir que sejam distorcidas e canalizadas em proveito de forças conservadoras, identificadas com a corrupção endemica e que não têm compromissos democráticos.

Tampouco, podemos admitir que se tornem aventuras sediciosas dos bem nascidos em casinhas do bairro alto.

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG



[1] Vitor Jarra, cantor e compositor chileno de origem camponesa, integrou de geração posterior à Violeta Parra responsável pela incorporação do cancioneiro folclórico à musica popular do Chile. Foi preso e assassinato em 16 de setembro de 1973, após o golpe militar.


Data: 17/07/2013