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Artigo - Os filhos de Liebknecht

Wagner Braga Batista

 

 

Honestamente, não creio que o ser humano seja vocacionado ao isolamento e ao   individualismo. Para o bem para mal, somos animais sociáveis, apesar da selvageria que nos impõe a civilidade contemporânea.

A ideologia liberal mostrou-se extremanente eficaz ao valorizar o individualismo. Ao capturar e acionar a pulsão  individual como diretiva do comportamento humano. Na prática, naturalizou e, atualmente, celebra motivações pessoais como irreversíveis forças motoras do comportamento humano. Capitaliza-as como de fossem definitivas, irredutiveis e incólumes ao exercício da consciência.

Deste modo, cria inexplicável disjunção entre pulsão e razão, como se todos nós fossemos movidos por instintos.

Sob este viés, nossa existencia fica confinada em horizontes limitados. Medíocres. Reduz a realização de compromissos mesquinhos com o próprio apetite, com a exigência de aprofundar e encher os bolsos das calças, de proteger com unhas e dentes o quadrante de ambientes privados, preferivelmente o quarto e  cama.

Este foi o horizonte desenhado para estas gerações que estão nas ruas.

Durante estas últimas décadas, sob a influência da midia e destas coisas que chamam de redes sociais, várias gerações foram estimuladas a exacerbar sua individualidade, sua vaidade e sua intimidade. Tornaram-se reféns desta cultura narcisica que enxerga o outro como uma simples extensão do próprio umbigo.

Trancados em si mesmos, no isolamento permamente desta multidão, que habita redes sociais, viram-se condenados a se metamorfosear numa estampa de camisa, numa marca de bonés, numa publicidade inderecorosa que acentua identidades a custa da discriminação da alteridade.

As manifestões, que eclodem em todo país, são pontos de ruptura. Sem dúvida, revelam diversas motivações. Incluem complexos e diferenciados sujeitos múltiplos cujos desempenhos não se encaixam necessariamente em modelos de análise convencionais aplicados aos movimentos de massa de anos atrás.

O partido, o programa, a pauta de reivindicações, a linha de ação, a organização, entre outros referenciais foram deixados de lado pela formação de um centro convulsivo, fragmentado e desordenado, cujo exame  requer a identificação de novos agentes sociais, de novas variáveis e de motivações ainda obscuras.

São manifestações controversas, porém portadoras de virtualidades

Contêm componentes conservadores impregnando perspectivas críticas e transformadoras. Uma coexistência contraditória que evolue em direções divergentes..

Este preambulo, tavez fosse desnecessário, mas elucida uma passagem bastante singela.

Fora dos jogos de futebol, nos últimos anos tornei-me uma pessoa arredia às grandes manifestações.

Porém, desta vez, deixe-me sensibilizar pela ousadia destes jovens icnoclastas que desmontam a política de faz de conta.

E, assim, adicionei-me aos milhares que foram às ruas. Eu e aqueles três, vulneráveis às intemperiés da vida

Refiro-me a um jovem casal, misturado a multidão, carregando nos ombros uma criança de tenra idade.

Lembrei-me de meus filhos, que eram levados a atos públicos, assembléias e sindicatos, muitas vezes contra sua vontade.

Porém, o jóvem casal sentia-se orgulhoso. Diziam-nos entusiasmados:

- Queremos que nossa filha lembre-se que participamos desta manifestação

Aproprie-me destas lembranças para estabelecer contraponto entre duas ações impulsivas com características distintas.

A primeira, remete-nos a Karl Liebknecht ( 1871-1919), militante socialista alemão que foi assassinado por milicias juntamente com Rosa Luxemburgo, em 1919.

Detentor de sólida formação politica, tinha plena convicção que suas inclinações pessoais não podiam se sobrepor aos compromissos partidários. As exigências da militancia política cobraram-lhe demonstrações de inegável coerencia. A ação coletiva e pública não só absorveram sua vida, mas também lhe envolveram em contundente drama pessoal. 

Certa feita, durante manifestação anti-belicista, seu filho colocado sobre seus ombros, sentiu vontade de urinar. Para não se afastar de sua atividade pública, não se permitiu atender o pedido da criança. A urgencia implicou em que seu filho urinasse  sobre seus ombros sem que, no entanto, Liebknecht se afastasse da manifestação popular. 

Aquela traumática experiêencia marcou a vida deste jóvem.

Alguns anos depois, quando irrompeu a I Guerra Mundial, numa reação impulsiva contra a abenegada militancia pacifista de seu pai, à primeira hora, apresentou-se como voluntário do exército alemão.

Diversamente do filho de Liebknecht,  movido por uma reação ao excesso de escrupulos de seu pai, os novos filhos de Liebknecht, vão às ruas para reagir à falta de escrúpulos dominante. Sujeitos multiplos, conformam este amplo e diversificado contingente que se mobiliza contra a contra a ambiguidade e a licensiosidade adotadas como modo de vida.

Os atuais movimentos de rua são manifestações reativas. Dotados de componentes impulsivos e emocionais, marcantes em mobilizações de massas, diferenciam-se de manifestações no passado recente, dosadas e regradas por crescente nível de organização das forças populares..

Estas forças, desqualificadas e arrefecidas por estratégias ultraliberais, hoje sofrem atrofia graças aos efeitos da anestésicos da cooptação e da domesticação, efetuadas por governos eleitos em seu nome.

Os novos filhos de Liebknecht, certamente, não são marcuseanos, porém nos suscitam algumas fecundas reflexões sobre o que é inovador e o que apodrece na atual conjuntura..

Quem são seus pais? Arriscamo-nos a dizer que são entes nebulosos e sem rosto, que diversamente do coerente Liebknecht , beneficiam-se da cultura da ambiguidade e da desfaçatez. Utilizam-se de artificios e poderosos instrumentos ao seu dispor para manipular seus filhos. Podem ser vistos nesta zona de sombra, que mascara a articulação da grande midia com poderosas corporações transnacionais. Podem ser identificados por meio de seus habilidosos alibis utilizados no exercicio de autolegitimação. Estão presentes nos circulos de interesses restritos que contaminam o Executivo, o Legislativo e o Judiciário.

À margem dos partidos oficiais, há grupos informais que defendem interesses não declarados. Entre os 513 deputados e 54 senadores, eleitos em 2010, há 273 empresários, o que representa 45% dos integrantes das duas casas legislativas.  A bancada ruralista é composta por 160 parlamentares. Os evangélicos participam com 70 deputados e 3 senadores.

As instituições e poderes públicos tornaram-se espaços privilegiados para que estes circulos de interesses restritos velebrem seus negócios privados.

O espaço público, gradativamente, foi ocupado e dominado por grupos informais e pouco transparentes que atuam de forma antagõnica aos efetivos direitos da população brasileira.

A reação dos jóvens, sem sombra de dúvida reveste-se de alguns aspectos críticos que se expressam por meio da anarquia, do vandalismo e de manifestações de intolerancia.

No entanto, é preciso notar que estas manifestações impulsivas e com desdobramentos muitas vezes questionáveis são legitimas reações ao ardiloso consenso fabricado. Reagem ao papel de amebas que lhes tinha sido atribuído pela cultura do dinheiro, do prestígio e do poder promiscuo.

 No imaginário impulsivo e transgressor destes jóvens, agencias financeiras, redes de supermercado, componentes da grande midia, aparatos repressivos, convertem-se em símbolos desta cultura que os violenta.

Os novos filhos de Liebknecht reagem à falta de escrúpulos. São reações emotivas, impuslsivas e agressivas, questionáveis, porém verdadeiras em sua essencia. São portadoras de incontestáveis sedimentos de legitimidade.

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG


Data: 08/07/2013