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Artigo - Nosso amigo Legal

Wagner Braga Batista

 

Dia 23 de abril do corrente, um incidente provocou perdas irreparáveis para o borracheiro Edmilson Ferreira da Silva, mais conhecido como Legal.

 

Sua oficina, na Rua Rodrigues Alves,  foi destruída pela imperícia de um motorista que, trafegando em alta velocidade, atropelou três pessoas.

 

O impacto do veículo foi tão forte que decepou a perna do borracheiro.

 

Na noite do trágico acidente,  caminhava com meu cachorro pela rua quando um rapaz, esbaforido e aos berros, anunciou o atropelamento.

 

Batia às portas das casas à procura da familia de um vizinho: Seu Oswaldo.  

 

De pronto, informou que fora atropelado juntamente com Legal e seu filho. Acrescentou que o menino ficara embaixo do automóvel e corria risco de vida.

 

Apesar de inúmeros traumatismos, o menino sobreviveu.  Porém, Seu Oswaldo perdeu parte do movimento em uma das pernas e Legal, mutilado, permanece no leito sem ter condições de trabalhar.

Conheço Legal há quase 30 anos.

 

 Inicialmente, por meio de relação esporádica e superficial,  muitas vezes limitada à prestação de serviços.  Com o passar do tempo, um fato peculiar nos aproximou: os pneus rotos do meu velho Gurgel ,sempre a exigir reparos.  

 

Deste modo pitoresco, com grande frequência, tornei-me beneficiário de sua conversa animada, de seu sorriso, de suas saudações efusivas, de suas brincadeiras inocentes e de seu extraordinário estado de espírito.

 

Assim foi se constituindo esta amizade que começara em pequena borracharia na Volta do Zé Leal e depois se transferiu para terreno contíguo aos fundos da garagem da Empresa Cabral.

 

Lá, juntamente com Seu Chico, que consertava geladeiras, eram paus para toda obra.

 

 Soube, agora que sua remoção deste local não foi consensual.

 

Após 25 anos de permanência, ele e Seu Chico,  foram retirados de seus locais de trabalho, sob ameaça do proprietário, sem que nenhuma indenização lhes fosse oferecida.

 

Dali, foram sumariamente expulsos

 

Seu Chico, retirou-se para as Malvinas. Doente já não trabalha mais.

 

Legal, permaneceu trabalhando em outra borracharia na subida da Rodrigues Alves.

 

Pouco antes do acidente, confidenciei o enorme prazer que ele me causava. Surpeendeu-se. Disse-lhe que era uma pessoa rara. Que não se deixava abater pelas vicissitudes da vida.

 

Muitas vezes, acabrunhado por problemas triviais, cruzava com ele. Apesar de mergulhado em sérias dificuldades, mantinha-se sempre risonho e feliz. Deste modo, convertia-se numa injeção de ânimo, que inevitalmente  mudava meu humor.

 

Deste modo, aos poucos, comecei a partilhar de sua alegria contagiante, de sua disposição para vida e de sua generosidade.

 

Percebi que Legal, em sua humilde indigência, transformara sua simplicidade num bem inestimável. Num bem que poucas pessoas podem lograr. Graças a ela, criou um contraponto com a minha vivência no meio acadêmico. A postura de Legal se transformara para mim numa antitese do que assistia neste ambiente que se tornava cada vez mais inóspito e  dificultava a afirmação de valores cultivados por  professores anos atrás.  Valores e práticas consoantes com a nossa vocação pedagógica..

 

A reversão de expectativas na universidade pública, certamente, implicou em degenerescência de relações indispensáveis a professores. Relações de companheirismo, que criaram laços comuns e fortaleceram a identidade docente foram subsumidas pelos negócios que transformaram a instituição num balcão onde tudo oscila em função de interesses pessoais e de contrapartidas. Deste modo, a ajuda mútua e a perspectiva de crescimento conjunto sofreram atrofias. Projetos coletivos deram lugar à ambição individual, à subliminar competição, à  voracidade para a obtenção de títulos, de cargos, de gratificações e de vantagens pessoais.

 

Vivi minha vida nesta universidade. De repente, via-me num ambiente inóspito. Como  um estranho no ninho.  Num ambiente, que exacerbava  esta cultura grotesca, que destaca o que as pessoas aparentam ser ao invés de valorizar  o que essencialmente são.

 

Ao seu lado, identificamos a humildade e tantas outras virtudes deste borracheiro, que se tornaram referenciais para mim. A imagem deste homem simples  convertera-se em emblemático  contraponto desta cultura que, em prejuízo de todos nós professores,  enraizavava-se na universidade. Contrastava com a soberba, com a arrogancia, com a vaidade e a presunção de alguns de meus pares.

 

Legal desconfiava quando lhe falava da admiração que sentia por ele.

 

Graças ao meu secular automóvel Gurgel, passei a privar da sua companhia.

 

Às vezes esquecia-me de pneus na borracharia e era advertido ingenua e sarcasticamente: as traças vão roer suas camaras de ar.  

 

Recentemente, contou-me que há pessoas que deixam pneus por mais de dois anos. Para ter espaço de trabalho, poderia se desfazer deles, porém, permanecem lá.  Do mesmo jeito com que foram esquecidos.

Sua generosidade é inacreditável. Apesar de suas priivações, é visto como pessoa ímpar nestes arredores. Tornou-se benemerente de carroceiros e carregadores de carrinho de mão.

 

Dias após o atropelamento, um carroceiro conversava comigo.

 

Explicava-me sua admiração pelo nosso amigo Legal. Dele e de tantos outros, que frequentemente recorriam aos seus préstimos.  

 

Legal  consertava  pneus de carrinhos de mão e de carroças de burro sem nada cobrar. Seua usuários ficavam devendo? Também, não..

 

Satisfazia-se com um simples  agradecimento.

 

Aos poucos fui descobrindo que Legal não era só simplicidade e generosidade. Também se convertera em esteio de duas familias. Por meio de trabalho penoso e precário criara o enteado, hoje adulto, seus dois filhos, Elton, o Borrachinha, e Viviana, além de ajudar duas sobrinhas.

 

Com orgulho, sente-se feliz por aqueles  que já estão encaminhados.

 

Deste modo, fomos cultivando relação de amizade, sem assentamento em nomes próprios. Percebi que ele não sabia meu nome e eu, somente após o bárbaro atropelamento, descobri que se chamava  Edmilson.

 

Há um filme, “A felicidade não se compra”, (Frank Capra, 1946)  no qual um personagem simplório e gentil dedica-se a sua comunidade. Repentinamente vê-se falido e sem horizontes. Desesperado, pensa em se suicidar, porém a comunidade,  depositária de seu desprendimento e de sua generosidade, mobiliza-se  para recompor sua vida.

 

Agora esta cena se repete.

 

Em meio a estas adversidades, há um fato bastante significativo que merece ser exaltado.

Apesar do ambiente inóspito, que assoma na universidade, são expressivas  as manifestações de solidariedade e de ajuda prestada por professores e servidores técnico-administrativos. Conduta semelhante à adotada por fiéis de igrega católica e por moradores de ruas circunvizinhas.

 

Com o propósito de oferecer condições de subsistência a Legal e a sua familia tem angariado  alimentos e recursos financeiros. São vivas demonstraçôes de solidariedade e de apreço  de muitos professores e servidores técnicos administrativos da UFCG. Esta conduta revela não só o reconhecimento pelas suas atitudes costumeiras, mas também o enorme carinho que todos lhe devotam.

 

Em meio a esta circunstancia adversa é gratificante ver a receptividade e o empenho destes colegas

 Esta é a atitude que se espera de pessoas que têm sentimentos, convicções e crenças bem sedimentadas. Reveste-se de grande significado para todos nós, que trabalhamos numa instituição pública e educacional, mas principalmente para seus familiares, que ora enfrentam sérias adversidades.

 

Enfim, aprendemos, o que já inferíamos: nosso amigo Legal é muito mais do que legal.

 

Com sua inquestionável  ingenuidade transformou-se em simbolo de generosidade. De generosia que se irradia e contagia.  Graças a isto, mesmo  mutilado, Legal ainda sorri.  

 

Cerca-se e se alimenta do amor de seus filhos. Preserva seu generoso sorriso e a tênue esperança de que, mesmo mutilado, ainda possa voltar a trabalhar.

 

Legal é um templo de fecunda generosidade que podemos cultivar.

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG


Data: 03/07/2013