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Artigo - A militarização do futebol na Paraíba

Amauri Fragoso de Medeiros e Luciano Mendonça de Lima 

 

 

Primeiro levaram os negros

Mas não me importei com isso
Eu não era negro

Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário

Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável

Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei

Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.

 

(Bertolt Brecht, 1898-1956)

 

 

Começa hoje (21/05/2013) as semifinais do campeonato paraibano de futebol. Muita coisa tem acontecido deste o ano passado até o presente momento e que pode levar a derrocada deste esporte na Paraíba. Trata-se de seu perigoso processo de militarização atualmente em curso. Vejamos por que.

 

No último dia 28/04/2013 Campina Grande passou praticamente todo o dia sob o efeito de uma chuva fina que foi se intensificando na medida em que tempo avançava. Isso não impediu que alguns poucos torcedores saíssem do conforto de seus lares para assistir ao jogo envolvendo Campinense Clube x Auto Esporte, marcado para às 16h00 no estágio O Amigão. Para se proteger do frio e da chuva, que certamente tomariam conta das arquibancadas do “Colosso da Borborema” naquele domingo, boa parte dos torcedores sabiamente resolveu levar consigo agasalho e guarda-chuva.  O que esses torcedores não contavam era com o fato de que muitos deles seriam impedidos de entrar no estádio pela polícia, caso não deixassem nas portarias do mencionado estádio os guarda-chuvas que traziam consigo.  O argumento utilizado pelos policiais para justificar a proibição foi, no mínimo, inusitado: segundo eles os guarda-chuvas poderiam ser comparados a armas brancas e, como tal, se transformar em perigosas armas letais no contexto de um suposto tumulto provocado pela multidão “enfurecida”. Como se não bastasse o constrangimento, ainda tiveram que arcar com um prejuízo extra, já que no intervalo de tempo entre o início e o fim do jogo vários guarda-chuvas desapareceram misteriosamente.

 

Esse patético episódio (digno de constar no anedotário nacional do festival de besteiras que de tempos e tempos teima em assolar o nosso país e que teve no falecido escritor e jornalista Sérgio Porto, o seu melhor intérprete), poderia muito bem ter passado em brancas nuvens se não fizesse parte de uma série de desmandos protagonizados por autoridades militares em relação ao futebol da Paraíba nos últimos anos.

 

Para não ir muito longe no tempo, a série de desmandos a que aludimos acima remonta ao campeonato paraibano  do ano passado, quando as autoridades responsáveis pela (in)segurança nos estádios de futebol resolveram erguer uma grade de ferro dividindo ao meio as duas principais arquibancadas do estádio O Amigão em Campina Grande, ou seja, a principal e a geral. O argumento utilizado pelas autoridades para justificar tal obra era de que aquele equipamento visava oferecer maior conforto e segurança aos torcedores, especialmente naquelas partidas de maior envergadura envolvendo Treze x Campinense. Se o argumento era esse por que as grades não foram estendidas para a área das cadeiras cativas? Na verdade, por trás dessa medida se encontra uma visão preconceituosa e bastante arraigada das nossas elites em relação ao povo brasileiro. Como se sabe, a geografia dos estádios de futebol no Brasil acaba reproduzindo a estrutura social desigual da sociedade em que eles estão inseridos, em termos de status e poder aquisitivo: na arquibancada geral se concentra, prioritariamente, os torcedores pertencentes às classes populares; na principal, os componentes das camadas remediadas dos mais variados tipos e nas cadeiras cativas os novos e velhos ricos.

 

Ao fim e ao cabo, o estádio se transformou, sintomaticamente, em um misto de curral e presídio a céu aberto. Além de demonstrar o seu caráter segregador, o tempo se encarregou de desnudar até a suposta utilidade prática da obra, pois as benditas grades acabaram sendo removidas. A pergunta que se impõe é a seguinte: quem vai ressarcir o erário público por tais prejuízos?

 

Como tal medida não foi suficiente para satisfazer a insensatez sem fim das autoridades encarregadas da (in)segurança do futebol na Paraíba, novas medidas arbitrárias haveriam de vir em seguida. Dentre elas podemos citar: a divisão e isolamento das torcidas por arquibancadas inteiras; utilização, por parte dos policiais, de um verdadeiro arsenal de guerra nos dias de partida de futebol, constituído de armas pesadas, de gases lacrimogênio e de pimenta, cassetetes, de cães treinados para atacar seres humanos; uso indiscriminado da violência por parte de policiais armados até os dentes contra torcedores muitas vezes indefesos; proibição de torcidas organizadas legalmente constituídas de entrarem nos estádios de futebol etc*.

 

Convém destacar que essas medidas antidemocráticas não têm se circunscrito a Campina Grande, a capital do futebol paraibano. Em João Pessoa, durante a primeira fase do campeonato paraibano, a torcida do Treze foi privada de seu direito de assistir a seu clube se exibir por um capricho da polícia, que impôs e determinou a realização de um jogo de uma torcida só, ou seja, do Botafogo, no estádio da (des)Graça. Recentemente, o Marizão, localizado na cidade sertaneja de Sousa, uma manifestação pacífica de protesto promovida por torcedores contra a senhora Rosilene Gomes (responsável pela implantação de um verdadeiro matriarcado na Federação Paraibana de Futebol que remonta aos anos 1980) foi violentamente dissolvida pela polícia.

 

Além de seu caráter autocrático, uma a uma das medidas elencadas por nós até aqui são ilegais. Isso porque desrespeita vários artigos do Código do Torcedor e, principalmente, da Constituição Federal, na medida em que violam princípios elementares da vida democrática, tais como o direito de ir e vir; de livre manifestação do pensamento e de consciência; de associação e organização; de fazer ou deixar de fazer algo de acordo com a lei etc. Por sua vez, causa preocupação o fato destas medidas terem tido o apoio e a conivência de setores da sociedade local, a exemplo de dirigentes de clubes, da imprensa local e de parte dos torcedores. Porém, o mais grave em tudo isso é que o Ministério Público (cuja missão constitucional, não nos esqueçamos, é defender a lei e os direitos do cidadão, inclusive do cidadão torcedor) chancelou tal absurdo, ao sediar a reunião que deu origem a esse estado de coisas um pouco antes do início do campeonato.

 

Frente a lamentáveis fatos como esses, há quem ache que essas medidas são o resultado de mentes doentias que desejam transformar a sociedade numa grande caserna, ou seja, querem transferir para o mundo social que existe além-muros dos quartéis e cadeias o ordenamento e as práticas autoritárias que regem as corporações militares. De fato, não negamos que por trás de muitas destes e de outras medidas correlatas postas em prática por autoridades militares contra a sociedade, especialmente aquelas que atingem membros das classes populares, se encontre uma atitude arrogante de quem se acha acima da lei e do bem e do mal, típica de países herdeiros de cultura autoritária como o Brasil. Contudo, convém lembrar duas coisas: em primeiro lugar, os cargos ocupados por esses senhores, a exemplo dos

Batalhões de Polícia Militar espalhados pelo Estado, dos Corpos de Bombeiros e das Superintendências de Polícia Civil são de livre nomeação do governador do Estado; e, por fim, todas essas medidas arbitrárias que passaram a constituir o cotidiano do futebol na Paraíba dos últimos anos fazem parte de um todo maior que é a política de (in)segurança, formulada pelo governo do Estado, através de seu secretário de segurança pública. Portanto, quem deve ser majoritariamente responsabilizado por tais desmandos é o senhor governador do Estado, pouco importa que seja por omissão ou ação deliberada.

 

Diante de tão graves acontecimentos é preciso reagir antes que seja tarde demais. E essa tarefa não deve ser exclusiva dos amantes do futebol, que por frequentarem e viverem o clima reinante em um estádio de futebol como se fosse um templo sagrado, são os que mais sentem na pele tamanha arbitrariedade. Na verdade, o que tem acontecido nos campos de futebol da Paraíba e, quiçá do Brasil como um todo, é parte de um projeto mais amplo de intolerância e arbitrariedade cometida pelos agentes do Estado e seus aliados na defesa da ordem burguesa, baseada na violenta e hostilidade em relação à maioria da população. Nesse sentido, essa é uma luta que diz respeito a todos interessados na defesa das liberdades democráticas e na construção de outra ordem social, aí incluído os que militam no campo do futebol.

 

 

* Ao que tudo indica o “saco” de maldade desses senhores parece não tem fim. É que na quarta-feira, dia 01 de maio de 2013, quando da partida envolvendo Campinense x Flamengo pela Copa do Brasil no Amigão, as “autoridades constituídas” resolveram inovar mais uma vez, ao proibirem a entrada de torcedores que portassem quaisquer camisas de outros clubes que não as dos dois que estavam jogando na noite daquele dia.  Como se isso não bastasse, no clássico do último domingo (12/05/2013) envolvendo Treze 0 x 0 Campinense mais uma vez as torcidas foram separadas por arquibancas, como se o torcedor fosse boi para ficar isolado feito bicho. Será que essa gente vai se superar nesta reta final de campeonato? Não duvidamos, pois, como diria a sabedoria popular “A maldade dessa gente é uma arte”.

 

 

Amauri Fragoso de Medeiros e Luciano Mendonça de Lima são professores da UFCG e torcedores de futebol. O primeiro é raposeiro, o segundo trezeano.


Data: 21/05/2013