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Artigo - Privax, a bebedura intragável ou de como o campeão moral gramsciano torna-se campeão de fato da alegria coletiva

Wagner Braga Batista

 

Uma substancia estranha comprometeu o abastecimento de água daquele país tropical na periferia do prodigioso mundo vertical.  Sob os auspícios de uma empresa não pública, nem estatal, descia pelas torneiras e aflorava pelos ralos resíduos de um inseticida que atingia a razão e eliminava a consciência social.  Subitamente, ao invés de água potável, todos consumíamos Privax. Todos, sem distinção de indiferenças, sem iniqüidades no processo de expropriação e de exclusão social igualitária tornáramo-nos reféns do Privax. Estamos condenados à privatização e ao amargo sabor da licenciosidade proporcionada pela bolsa delivery, que entregava nosso patrimônio e nos fornecia Privax à domicilio.

 

Intragável, Privax tornou-se a bebida e o desodorante de jovens, adultos, idosos e nasciturnos. Onze entre dez celebridades de olhos azuis e sem nenhum neurônio na conta bancária preferiam o cheiro e  o gosto de indiferença de Privax.

 

O liquido se disseminou e contagiou a tudo e a todos. Em supermercados e shopping, Privax substituíra a moeda nacional. Equivalia a débitos pessoais, ao crescente aumento de encargos e de tributos pelo consumo exagerado de Privax.

 

O líquido, em inequívoca demonstração de modernidade e de consonância com a postura politicamente correta, aderiu ao voluntariado, associou-se ao botox, revelou seu apreço ao blasé e a meia boca. Por inúmeras vezes manifestou-se avesso à toda sorte de totalitarismos distributivos e francamente favorável à democracia do mercado. O liquido, fiel aos valores dos heróis do super liberalismo e pós-modernismos tornou-se evanjjelhico e adepto da liberação dos direitos dos outros.

 

Asseverou que acreditava piamente em todas as crenças, que segurava mãos  invisíveis que manipulavam a sorte de oferecer favores aos PhDeuses, aos mais bem dotados e fiéis apaniguados.

 

O líquido Privax, de repente jorrava pelas bolsas de valores, pela avenida Paulista e oferecia empresas em troca de michês em Londres e Nova Iorque. O líquido maravilhoso produzia royaltes, porcentagens  e propinas por propagandas enganosas, empresas nacionais depreciadas e brazis oferecidos em troca de nada. Corroia canais de comunicação, companhias telefônicas e entupia tubos, instituições públicas e vasos sanitários.

 

Privax reproduzia-se em éticas responsáveis, obscuras e inomináveis. Pontificava como azeitona num prato apelidado de Consenso, servido exclusivamente numa confraria de iluminados paulistas, com sucursais em cantinas em Brasília e num refinado restaurante em Washington. Sob a égide do liberalismo restaurado, Consenso era degustado com dólares e acordos selados em ambientes desregulamentados, regado, invariavelmente, por vinhos finíssimos sob os auspícios do alivio à pobreza e do envolvimento inescusável.

 

E assim, Privax chegou ao foot ball.

 

Patrocinado pelos soccers de FHC, digníssimos membros do empório estatal, reputavam-se homens de bem, eméritos e benemerentes de cofres públicos, afiliados à ética dos negócios facilitados, à CBF e à FIFA.

 

A defesa civil, o alto clero, Jader Barbalho, Chacrinha e juízes do supremo atestaram que o Privax não era uma droga ilícita, não implicava em doping, não acarretava teste de DNA, não provocava a descriminalização do aborto, não afetava consciências cristãs, a conduta ilibada, nem a libido de jovens adolescentes.

 

No entanto, estas autoridades altamente competentes advertiram que o Privax não prestava para cozinhar e nem para lavagem de roupa do Executivo, no Parlamento e no Judiciário.

 

O Privax que escorria pelas torneiras de lares despossuídos e chafarizes públicos, também pingava nos bolsos de políticos bem intencionados e de inocentes juízes de futebol.

 

O caudal privatizante tomora conta das bacias, rios e instituições públicas de nosso país. Alimentava a cultura dos círculos restritos, dos centros de excelência fajutos e do absenteísmo.

 

Graças a ele,  Vil Teixeira, aprendiz de apontador de jogo de bico, sediado na bolsa de valores,ascendeu à condição de especulador mor, chefe do futebol anti-brasileiro e aos poucos se tornava sócio proprietário do Brasil.

 

Ganancioso, tomara posse de cinco governos de Estado e noventa de três prefeituras espalhadas pelo andar térreo e subsolo da nação. Colhia vantagens e prefeituras, como quem pega manga caída no chão dos quintais da República Sinecurista de Brasília. Não se sabe como, nem por quê, a água só caía no seu roçado. E graças ao seu promissor roçado, choviam graciosamente  isenções fiscais e dinheiro público, a rodo, sem que seus honestíssimos e diligentes assessores pudessem conter o caudal privatizante. E chova neste roçado...

 

Como quem come queijo com goiabada, com a facilidade com que prosperam o marketing, a falsificação e a propaganda enganosa, Mercedes Bens e apartamentos luxuosos brotavam nos promissores roçados da CBF. Jatinhos e parlamentares mudavam de rota para aportar nestes quadrantes. Liberalíssimos prestavam-se ao aluguel a preço de banana.

 

O prodígios Vil Teixeira,  arrendara grandes extensões de terra, hotéis, aviões, helicópteros, além de trinta e quatro campos de futebol com os juízes anexos dois parlamentares. Nas capitais comprara Corcovados, Morumbis, a Baia de Todos os Santos e até a estátua do padrinho Cicero  em Juazeiro.

 

Depois de comprar de si mesmo a CBF, adquiriu, também, de si mesmo, os lucros da Copa do Mundo de 2014. Este notável cidadão, superava a quadrilha que se entrincheirou no Estado e obteve financiamento público para privatizar o Brasil.

 

Agora Vil Teixeira, depois de se tornar dono da CBF, queria ser dono do campeonato brasileiro de 2010. Vender os times, bolas, camisas, chuteiras, regras, árbitros de futebol, patrocínios, pipocas, latinhas de cerveja, cuecas e sutiãs nas arquibancadas.

 

Juntamente com torcionários de Garrastazu, empresários de jogadores, marqueteiros, mafiosos e outros homens de bem, emulado pelo Privax, urdia mais uma trama contra o futebol brasileiro.

 

Movido por este propósito,  arregimentara trezentos caboclos tranca ruas, desempregados após as eleições paraibanas,  treze franquias religiosas, quatrocentos e doze empresários fazedores de anjos,  duas dúzias de satanás, autenticados, importados do latifúndio, transladados em legítimos aeroportos de Araruna e em humildes aviões de um pobre Zé, Contratara novecentos e quinze PhDeuses para compor um estafe altamente polivalente e qualificado em promoção de negocios sustentáveis e indeclináveis, capazes de farejar, forjar e ajustar editais, em aliviar a pobreza e acima se tudo instaurar a absoluta supremacia das forças do bem contra as forças do mal.

 

Com esta trupe inigualável, a serviço dos negócios socialmente sustentáveis, dispunha-se a surrupiar mais um campeonato brasileiro em nome do MSI, das forças do bem, dos parlamentares propináveis e dos lucros eticamente embolsáveis.

 

Desavisados, milhões de tricolores torciam em todo país. Bebedores das águas do Boqueirão e imunes ao Privax, canalizavam suas energias em prol da dignidade futebolística e da socialismo.

 

Em Campina Grande, acompanhados de fraternos e solidários integrantes de movimentos sociais e confrades adversários, torcedores do Fluminense preparavam-se para a longa jornada em direção à Barueri. Milhões de lavradores, operários, professores, artistas, intelectuais, estudantes, sem tetos e sem terras, trabalhadores desempregados, entre tantos outros, integravam-se à Grande Marcha em defesa do reconhecimento do tricolor das Laranjeiras como legitimo campeão de 2010.

 

A Longa Marcha dos tricolores, iniciada dia 17 de novembro de 2010, superava em números a pequena marcha de Mao Tse Tung, na China, e o curto percurso do Cavaleiro da Esperança, em 1924.

 

Em menos de dois dias já teriam atravessado, a pé, sete estados do país e ciosos de que não cessariam as adesões à causa tricolor.

 

Por fim, a Grande Marcha teve inicio. Como previsto, sábado, véspera do jogo, apesar da fome, da sede, do cansaço, do calor e do frio estavam milhões de torcedores às portas de São Paulo. ]

 

Fascinados com o élan da torcida anti Privax, palmeirenses e tricolores paulistas integraram-se ao cortejo vitorioso para abraçar o estádio de Barueri e saudar o time gramsciano, política e moralmente campeão brasileiro.

 

Do Rio de Janeiro, das alterosas e dos pampas várias caravanas somavam-se à Grande Marcha tricolor proveniente de Campina Grande.

 

Escondidos nos esgotos, em caixas dois, em laranjas, em presidentes de federações fantasmas, em mensalões, nas gavetas do DEM e em grandes mansões nos jardins paulistas, Vil Teixeira e sua trupe sentiam-se acuados pela força das massas. Eram milhões de torcedores nominados foras do mal que procuravam restabelecer a dignidade no futebol brasileiro. Homens, mulheres, crianças e idosos  que afluíam de todos recantos do Brasil para consagrar o verdadeiro campeão de 2010.

 

Com mísseis adquiridos da máfia russa, dólares e euros de empresários de jogadores, grana embolsada de patrocinadores, escombros de estádios implodidos, com a anuência de parlamentares, membros dos primeiros escalões do governo, arames farpados que cercavam o Maracanã, os faustosos vitrais, muros, cataratas e mausoléus encravados em campos de futebol reformados e todas as armas da exclusão social, Vil Teixeira pretendia conter as grandes massas e a inumerável torcida tricolor prestes cessar o amargor do Privax, a desatar os nós da alegria e da felicidade coletiva.

 

No curto espaço de uma semana, acirraram-se vilanias e tramas contra o Fluminense. Despejado, por um golpe de mão, da liderança do campeonato, o Fluminense e os milhões de torcedores mantinham-se inabaláveis.

 

Atentados contra a moral e a retidão no esporte estavam sendo praticados a todo instante. A céu aberto e a olhos nus, a consciência pública era agredida pelos asseclas de Vil Teixeira. Velhinhos torcedores do Fluminense eram vilipendiados nos estádios. Crianças choravam motivadas por um misto de medo  e de vergonha das arbitragens.

 

Semana anterior um pobre time mineiro fora pungueado no Morumbi. Durante o deslocamento da grande marcha tricolor, duas rapinas estavam sendo praticadas contra o time do Vitória, na Bahia. Os rapinantes ganharam votos de louvor, medalhas de honra ao mérito, três quilos de ouro, caminhões de diplomas e dez notas dez das comissões de arbitragem a serviço de Vil Teixeira.

 

Sem se dobrar aos percalços, à ladroagem e às tramas, a grande marcha em prol do time gramsciano aproximava-se de Barueri.

 

Temeroso da presença e do testemunho ocular dos torcedores o juiz convocou os dois times, as bandeirinhas de corner, cinco bolas e duas traves para dar inicio a partida. Sem aguardar a heróica chegada da imensa torcida tricolor e o inevitável desfecho do determinismo histórico, o arbitro se antecipou aos fatos. Ainda faltavam trinta e sete quilômetros de caminhada e o prélio teve inicio.

 

Aos três minutos de jogo, o zagueiro do time adversário, que atua no ataque do Fluminense, já havia ceifado três metros quadrados de grama chutando o chão. Como um bode cego, arrancara com os chifres cinco lascas da trave. Insatisfeito, como um cabeça de bagre mal amado, chutara cinco atletas de sua própria equipe. Apesar deste infortúnio a Grande Marcha Tricolor não se rendia aos reveses e chegava triunfante  à Barueri.

 

Atravessava o Tiete quando os radinhos de pilha anunciavam o gol do Corinthians, no Barradão. Os milhões de torcedores provenientes de Campina Grande, aceleraram o passo, orientados por João Otávio, o ínclito, e pelo Papa João XXII, o prudente. Não  poderiam ceder às provocações e ardis, posto que estava gravado nos memoriais futebolísticos que, após o advento de Dilma, a loura vamp, guerrilheira da metralhadora furta cor, criada pela folha de São Paulo, todos campeões morais também seriam campeões de fato. 

 

Neutralizado pelo poderio das massas, Vil Teixeira mantinha-se recluso e injuriado. Capitulara por que nada mais poderia conter o ímpeto tricolor. O Fluminense restaurara a alegria coletiva e irmandade de todos os tricolores socialistas da face de terra. Recuperara a dignidade perdida do futebol brasileiro e, mais do que isto, criava as condições propicias para que historicamente pudéssemos dissipar o sabor amargo do Privax.

 

E assim, a Grande Marcha tricolor proveniente de Campina Grande penetrava na arena de Barueri erguendo a bandira do patrimônio e dos serviços públicos. Simultaneamente, o time tricolor arrancava rumo à retumbante vitória.  Na Bahia, todos os santos também se uniam contra o caudal privatizante, o amargor do Privax e a bandalheira no futebol.

 

A partir daí, todos os tempos tornaram-se um tempo só. Gols, aqui e ali, de forma inconteste reiteravam que o mérito tricolor. A irreversível arrancada do Fluminense empolgava a todos.

 

E assim, os gols que se iniciaram as 18 h 9min não iriam cessar.

 

Tentava prestar atenção ao jogo e só via gols. Incrédulo, fechei os olhos e quis ouvir a verdade verdadeira do radinho de pilha. Mas, enfim, eram gols atrás de gols.

 

Dois dias depois, após a longa caminhada de retorno de Barueri. Eufórico e dominado pelo cansaço, ainda não conseguia dormir. 

Apegado ao radinho de pilha, inseparável companheiro dos momentos de angústia e aflição, ouvia as entusiásticas narrações de gols.

 

Após 48 horas, os gols ainda sucediam. Soube, então, que o placar entrara em pane. Não conseguira acompanhar, memorizar e registrar os gols do Fluminense. Pedira auxilio ao meu radinho de pilha para reconstituir o resultado da partida.

 

O jogo já havia encerrado e os gols continuavam ocorrendo. Cada vez que um menino de rua era resgatado do crack, havia um gol do Fluminense. Se uma adolescente  se emancipava da prostituição, soava o grito da torcida. Quando terras improdutivas eram ocupadas por lavradores, multidões ovacionavam. Eclodiam irrupções nas fábricas, operários se sindicalizavam e novos gols iam surgindo. Quando se coibia a especulação financeira, Conca marcava outra vez. Ao presenciar políticos corruptos e juízes ladrões sendo autuados, o Fluminense balançava as redes. Ante a ampliação e a melhoria da educação pública, novos gols ocorriam.

 

Então, para não perder o embalo, começaram rapidamente a construir hospitais, ampliar redes de serviços públicos e proporcionar transportes coletivos para a população das periferias.. Todos queriam assistir espetáculo futebolístico e ver belíssimos gols do tricolor. E o Fluminense não parava a goleada. Em homenagem ao Congresso Universitário, Fred dedicou seu gol a professores, servidores e estudantes da UFCG. E, neste dia inesquecível, até o Washington, involuntariamente, marcou um gol.

 

E assim, contrariando o determinismo histórico, o roteiro das privatizações e a exclusão social, o Fluminense abrira o caminho para a felicidade coletiva, para o socialismo renovado  e para a alegria efêmera das grandes massas.

 

Queria descansar, dormir, mas o radinho de pilha não cessava a exultante narrativa de gols, entremeada de denúncias de falcatruas de Vil Teixeira.

 

Altas horas da noite, para alegria da galera, os gols continuavam a acontecer.

 

Agitado e com compulsões tricolores, em absoluta vigília, não sabia se sonhava ou me mantinha acordado. Imaginei que estivesse sonhando. Porém ouvi a indefectível verdade verdadeira narrada pelo meu inseparável radinho de pilha: o Fluminense, campeão moral de 2010, infligira uma expressiva derrota no Privax e vencia por inquestionável e inusitado placar: mil quatrocentos e treze a um.

 

Como poderia voltar a dormir com tanta euforia...

 

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG


Data: 22/11/2010