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Artigo - A festa de São Cosme e Damião nos subúrbios do Rio de Janeiro

Wagner Braga Batista 

 

A recepção em Salvador foi calorosa. Milhões de torcedores do Fluminense, apinhados no aeroporto, com terços, fitas do Senhor de Bonfim e amuletos, aguardaram o grande campeão da temporada durante três dias. Abstiveram-se do carnaval das coligações e dos shows humorísticos de candidatos.

 

Na torcida tricolor tudo era alegria..

 

Fora dali, nos ambientes sobrenaturais e subterrâneos da CBF, chegara a notícia de que a CONMEBOL cortara a cabeça de um time brasileiro. Suprimira uma vaga na Taça libertadores das Américas. Vil Teixeira e dirigentes de clubes de futebol mantinham-se disciplinadamente calados.

 

Apenas o General Garrastazu e Toninho Malvadeza se regozijavam. Imaginando tratar-se de campeonato insurrecional ou de disputa entre forças revolucionárias para emancipar a latinoamérica, saudavam o ato unilateral. 

 

Menos um para libertar as Américas!

 

Em silencio, Vil Teixeira deslocara-se para a Bahia. Mandara comprar todos os patuás, enterrar três sapos enormes, com as bocas costuradas, sob as traves do gol tricolor.

 

Ordenara que, em cada entrada do campo, sacrificassem três bodes chifrudos, cinqüenta e cinco guinés e trinta e duas galinhas pretas.

 

Insatisfeito com a última vitória do tricolor, Vil Teixeira resolvera interditar o Maracanã por mais dois anos. Emparedou as entradas do estádio, levou todos os cadeados para a Bahia e queria vedar o aceso da torcida tricolor às arquibancadas do Barradão.

 

No vestiário não daria lugar para jogadores do Fluminense trocarem a roupa. Repleto de velas para todos os santos, flores e perfumes para orixás e tinha encomendado também milhares de garrafas de cana um caboclo mamador arrivista. Falsificara centenas de charutos cubanos e distribuíra com todos três pretos velhos da Bahia.

 

No vestiário, abarrotado de figas, amuletos, trevos de quatro folhas, patuás, litros de água benta, tonéis de azeite de dendê, guines, pés de coelho, fieiras de alho, galhos de alecrim e arruda, pau-ferro, espadas de São Jorge, centenas de pinhão roxo e dois exus tarados, não havia espaço nem para um pequeno pote de arroz. Os jogadores do Fluminense tiveram que pedir em espelho emprestado, foram se maquiar e se vestir num  infecto mictório de botequim a quarenta quilômetros do estádio.

 

No trajeto para o Barradão eram assediados por pombas giras e marias chuteiras baianas que rodavam bolsas e terços da campanha de Heloisa Helena. 

 

Induzidas por Vil Teixeira queriam fazer exames de DNA, adiar jogos do Corinthians,  levar o Coração Valente para posar numa revista gay  e dançar num pagode promovido pela CBF para festejar, antecipadamente, outro aniversário de time de São Paulo.

 

Então, Vil Teixeira antecipou a festa de São Cosme e Damião para sexta-feira . Ao invés de festa de ibejis promoveu um grande pagode para seleto grupo de convidados. Fez oferendas a Von Blater, ao Corinthians e aos times de São Paulo. Tornou-se grande anfitrião de ditadores africanos com a promessa de votos na futura eleição da FIFA. Aproveitou para fazer urucubacas contra o Fluminense até o dia 25 de outubro.

Para tristeza do povo baiano e para assegurar o sucesso do pagode, seqüestrou Cosme e Damião e expulsou crianças, êres e ibejis do cenário.

 

Em vez de alguidares com farinha e galinha preta, ofereceu lagosta e champanhe apenas às entidades convidadas.

 

E, assim, foi feita na festa de São Cosme e Damião antecipada.

 

Nas encruzilhadas não houve ebós, nem despachos.

 

Frustrados, vultos esquálidos saiam das penumbras. Não eram erês, dois-dois ou ebejis. Como faziam todas as noites, vinham buscar os despachos. Eram meninos de rua, crianças esfomeadas. Estas entidades profanas, de dia aspiram pedras e à noite não comeriam nada. Emergiam das entranhas da sociedade para comer despachos. Tragavam cachimbos, embebedavam-se com a aguardente, engasgavam-se com farinha e comiam frangos crus depenados. Ao final da comilança, regurgitavam a opulência e o desperdício da fome civilizada.

 

Depois viajariam para paraísos astrais. Em transe, as entidades profanas exibiriam malabares, furariam as veias em sinais de transito e transitariam em óbitos e prontuários. Surgiriam, bruscamente, pedindo verbas públicas em projetos acadêmicos, vagas em ONGs filantrópicas e desapareciam no momento seguinte. Tornariam a surgir com saquinhos de São Cosme Damião, obtidos em casas de correção  e balas distribuídas em favelas e terrenos baldios das periferias.

 

Estas entidades profanas que vagam como espectros noturnos. Começaram a surgir espontaneamente nas ruas do suntuoso mundo. Apareciam em pontas de ruas, em canaviais e carvoarias. Costuravam bolas para a Nike e trapos para a Benetton.

Quando tem sono, dormem sob marquises e na falta de deuses eficientes pedem proteção ao crack. Entidades feias e mal vestidas são proibidas de viver sob a luz do sol e de entrar em shoppings.

 

Revoltados com Vil Teixeira, ibejis e êres entraram em campo. Com eles, pais e mães de santo e caboclos que não são arrivistas fizeram plantão por três dias. Os terreiros funcionaram na véspera para denunciar mais esta falcatrua.

 

As forças do além e as entidades profanas passaram noites inteiras para promover o consenso do bem. 

 

Consorciadas nesta beneficente empreitada, venceram as forças do bem, bem intencionadas.

 

Para alivio da torcida tricolor e de todas crianças do mundo, Vil Teixeira deu com os burros n’ água. No dia do jogo contra o time de empresários baianos, o feitiço virou contra o feiticeiro.

 

Os Ibeijis ao verem a camisa branca, verde e grená, ficaram encantados. Imbuídos de que são entidades do bem, identificados profundamente com as crianças profanas,  insurgiram-se contra as maquinações de Vil teixeira..

 

Encarnados em Conca, continuaram sua evolução espiritual jogando futebol dentro do campo. Decidiram que o amadurecimento seria alcançado por novas vitórias do Fluminense. Em nome da evolução espiritual, varreram o marketing e patrocinadores dos estádios. Expulsaram dos vestiário, empresários que pagam propinas para escalar jogadores e se pronunciaram em defesa do respeito ao trabalho. Em solidariedade, a técnicos demitidos e injustiçados, escreveram um manifesto contra tribunais de injustiça esportiva.

 

Num grande mutirão retiraram crianças da fome, do frio e do crack e resolveram ser campeões brasileiros. Baixaram o espírito da generosidade tricolor e proporcionaram grandes alegrias para todos torcedores brasileiros..

 

Então os ibejis e êres deram o rumo da festa.

 

Em seis minutos o Fluminense venceu mais um jogo. E crianças alegres saiam das ruas para freqüentar escolas. Traziam pais e mães desempregados para lhes oferecer novas oportunidades na vida. Traziam bolsas com alimentos e, pelo menos, mais dez dias de esperança. Sabiam que era muito pouco, não iriam muito longe.

 

Mas, no entanto, iam.

 

Graças a estas entidades baianas, numa deferência do Papa João XXII e à vitória do Fluminense,  todas as crianças  do mundo, livres da pobreza, da miséria e do crack iriam festejar o São Cosme e Damião, no dia certo, 27 de setembro, nos subúrbios do Rio de Janeiro.

 

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG

 


Data: 27/09/2010