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Artigo - A grande convenção dos biltres

Wagner Braga Batista

 

 

Para enriquecer o patrimônio político, a cultura brasileira e o anedotário popular os biltres de toda sorte e de toda parte organizariam um grande conclave.

 

Fizeram algumas reuniões preliminares para tratantes e tratativas. Chegaram a alguns entendimentos, acordos e procedimentos normativos. Empenharam-se também em constituir uma memória dos biltres e heróis da ladroagem.

 

Procuraram rememorar seus discursos, seus artifícios, seus álibis e seu extraordinário jogo  cintura. Recompuseram seus rituais e sua desfaçatez.

 

Lembravam –se com júbilo dos seus malabarismos. Quando impunham regimes autoritários falando em democracia. Quando defendiam ardorosamente a legalidade e se beneficiavam do ilícito. Quando proclamavam a primazia do tratamento equânime e universal, reivindicavam-se da excepcionalidade. Quando se valiam da fraude, invocavam a probidade. Ao tempo em praticavam obscenidades políticas, apresentavam-se como campeões da moralidade. Defensores do atraso e do retrocesso, apelavam costumeiramente à modernização.

 

Tão habilidosos são, que, ainda hoje, viúvos da ditadura militar, autodenominam-se democratas. Clamam pelo liberalismo, pela legalidade, pela moralidade e pela probidade, porque já não podem fazer uso da autocracia.

 

E a comissão dos biltres, encarregada da organização do evento, passou noites e dias preparando extensas listas de convidados. Eram tantos que quase desistiam.

 

Porém um evento deste porte não poderia ser marcado por ausências. Tratando-se de um país continental, com tanta diversidade de maracutaias, consideraram natural que a lista de convidados fosse mais volumosa que códigos penais, que fosse mais extensa do que catálogos telefônicos, mais numerosa  do que as agendas de casas de tolerância em Brasília..

Em tempo perceberam que não poderiam ignorar os préstimos de bajulado

 

res, xeleléus, cafofas, abjetos, chaleiras, babões, esfrega botas, lambetas, baba-ovos, corta-jacas, sabujos e puxa sacos que formam este amplo espectro de desprezíveis a serviço dos biltres.

Estes homens desprezados injustamente compõem a prestimosa classe de aduladores.

Um dos organizadores salientou:

 

O que seria de nós se não fossem estes humildes incensadores e louvaminheiros. Estes são nossos verdadeiros pilares quando nos faltam o chão e os álibis. São eles que comparecem, abnegadamente em juízo e em delegacias em nossa defesa para chaleirar, prestar falsos testemunhos, mentir e nos livrar de flagrantes e da ignomínia pública.

 

Acrescentou:

 

Nos tempos atuais, a nossa visibilidade, a nossa manutenção no cenário político e a imagem que forjamos devem-se à grana que depositamos no caixa da grande mídia e no bolso de alguns articulistas mas, antes de tudo, à dedicada ação de xeleléus e lambe cus. Não fossem estes nobres cidadãos e os ingênuos eleitores já teríamos sido varridos do mapa a muito tempo. É forçoso reconhecer que nossa subsistência é indissociável da ação permanente e despudorada de chupa-caldos, enxuga gelos e lambe cus.

 

Para concluir, foi enfático:

 

Graças a concursos públicos, a novos juizes e promotores e à nova mentalidade que se instala em órgãos de investigação criminal, corremos sérios riscos de extinção. Por tudo isto urge a criação da Associação das Pústulas e Sinecura dos Infames do Poder Legislativo. Precisamos nos organizar não mais como uma quadrilha ou um partido com registro, fundos públicos e tempo no horário eleitora,l mas sem nenhuma base de sustentação. Precisamos tratar eficazmente de nossos interesses de biltres de modo eficaz e qualificado, por meio de uma entidade de representação de classe que se dedique exclusivamente aos nossos benefícios, privilégios e vantagens. Para arrematar, é preciso dizer que essa ação não é incompatível com nossa inépcia parlamentar. Poderemos sem nenhum prejuízo de nossos privilégios e vantagens como legisladores, continuar ganhando aqui e acolá.

Após esta longa preleção, trataram de finalizar os preparativos para a convenção.

 

Não fariam diferenciações ideológicas de qualquer natureza.

 

Revelando notável desprendimento, convidariam pústulas de todas estirpes, infames de todas as crenças, autores de todos delitos, portadores de todos os vícios, de todos os gêneros e sexos sem nenhuma discriminação.

 

Para não gerar desconfianças ou melindres, a identidade de classe dispensaria atestados. Far-se-ia à luz de biografias e de currículo simplesmente declarados. Os biltres associados não precisariam apresentar documentos adulterados, depoimentos forjados ou falsas fotografias.

 

Tampouco deveriam ser submetidos a constrangimentos. Seria suficiente demonstrar in loco que estavam devidamente habilitados e vocacionados às falcatruas.

 

Esta ampla e generosa política de unidade dos biltres, construída a duras penas, deveria convergir para uma portentosa organização. Não mais um obsoleto partido, mas uma organização inovadora e suprapartidária capaz de promover com eficácia e agilidade interesses, vantagens, privilégios, negociatas e trapaças.

 

Seria uma empresa com logomarca, com registro em cartório, com endereço na praça, pessoa jurídica  alaranjada, declaração de renda arranjada junto a fiscais da receita, marketing na mídia falada e televisada.

 

Por fim chegou o dia da convenção.

 

Para honrar as mais caras tradições políticas, nacionais e regionais, os biltres consorciados deveriam resgatar suas reservas morais. Deveriam recuperar a memória de mentores e de protagonistas  de grandes roubalheiras. Em seu ritual de adesão à entidade, deveriam soerguer e louvar os mestres do patrimonialismo, da formação de sinecuras, da promoção do direito consuetudinário, da operosa sangria do Estado e da apropriação de recursos públicos em beneficio privado..

 

Não poderiam deixar de lembrar precursores desta nova empresa inovadora. Deste modo, prestariam homenagem aos responsáveis pela formação de fortunas com simples propinas. Ofereceriam comendas aqueles que subtraíram altas somas do erário público. Detentores de latifúndios, duramente alcançados com grilagem, falsificações e assassinatos, ganhariam troféus. Os empreendedores de grandes indústrias e agronegócios. logrados por meio de sonegação fiscal, teriam direito a condecorações.

 

Por fim seriam proclamados os grandes laureados. Por suas estratégias bem sucedidas e  seus métodos inovadores, agentes da inovação em falcatruas conseguiram feitos inusitados. Obtiveram o inimaginável:  financiamento público para privatizar e se apropriar de empresas estatais. Sem sombra de dúvida, este golpe é inacreditável.

 

Deste modo, foram reconhecidos como verdadeiros campeões das falcatruas e se tornaram os grandes vitoriosos na convenção dos biltres.

 

Celebrados por todos, choravam emocionados e dedicaram algumas palavras de agradecimento a FHC e Mendonça de Barros. A seguir, disseram-se indignados com atuais políticas publicas que desperdiçam recursos públicos, que poderiam ser desviados, com programas de combate à fome, com construção de escolas e hospitais.

 

Fizeram uma curta exposição:.

 

Não podemos esquecer integrantes de históricas oligarquias.  Estes homens que se dedicaram voraz e tenazmente ao patrimonalismo ludibriando eleitores e expropriando o Estado. Estes homens notáveis, verdadeiros malabaristas, montaram prodigiosos esquemas, mamaram secularmente e hoje com extraordinária habilidade renegam no seu presente suas ações no passado. Não podemos esquecer os ancestrais da pilhagem. Resgataram o tirocínio daqueles que descobriram o caminho das pedras.  Exaltaram o senso de proteção familiar daqueles que devotaram à família tudo que apropriaram do Estado. Daqueles que generosamente criaram mecanismos distributivos e políticas afirmativas para seus familiares e amigos com partidos de aluguel e legendas partidárias. Daqueles notáveis homens públicos que privatizaram nomeações, cargos, empregos fantasmas sem nenhuma função e com salários avantajados. Todo este legado não pode ser ignorado na tradição biltriana.

 

Para finalizar, os campeões das falcatruas advertiram que a modernização conservadora e o capitalismo civilizado deveriam recuperar a habilidade em subtrair direitos, a capacidade de obter vantagens, bem como converte-las inovadora e racionalmente, em favores e privilégios para familiares e apaniguados.

 

Enfatizaram que, por intermédio do patrimônio publico, as vantagens graciosamente obtidas eram um trunfo. Seriam continuamente oferecidas como favores trocados. E assim, teriam garantia da sobrevivência dos biltres no capitalismo regenerado.

 

Neste dia festivo, com amplo respeito às diferenças e apreço à diversidade,  terminou a grande convenção, de forma honrosa, digna e amistosa sem que nenhum biltre fosse discriminado.


Data: 14/09/2010