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Artigo - UFA !!!! ...ou de como o Papa João XXIII nos proporcionou a décima segunda vitória, a alegria dos torcedores e evitou a queda livre do Fluminense

Wagner Braga Batista

 

Desesperado, arrumamos as malas. Corremos para o Aeroporto João Suassuna, instalamos a aparelhagem de tráfego aéreo, ampliamos a pista de pouso e zarpamos num Concorde. Em três minutos chegamos à Roma. Ou melhor, ao Vaticano.

 

Estávamos a rodadas sem vencer. Sendo chutados como cachorros vadios. Qualquer um que se aproximava sentia-se no direito de bater, cuspir e xingar. Viam o Fluminense na rua e corriam atrás. Transformaram-nos na Geni das últimas rodadas

 

Portanto, fomos ter com o Papa e obter explicações. Mas, lá chegando, não víamos o Papa.

Onde estaria João XXIII, protetor dos humilhados e  do Fluminense?

 

Lá, descobrimos que o Cardeal Ratzinger, em sua cruzada contra a pobreza e a teologia da libertação, havia aprisionado o Santo Homem nos porões da casa de Pedro. Com ele, estavam nas masmorras, Leonardo Boff, Ernesto Cardenal, D Pedro Casaldaliga, D Tomas Balduíno, Frei Betto e tantos outros. Encarcerados, não podiam estar ao lado do povo marginalizado, nem torcer pelo Fluminense.

 

Dirigimo-nos então ao vampiro Papa. Após a audiência, preparamos um plano sinistro. Como bom herege, pedimos autorização ao Divino e um pequeno obséquio: Não interferir na libertação dos que ousam se emancipar.

 

E assim, mergulhamos nos subterrâneos do Vaticano, em bancos suíços, lojas maçônicas e constatamos que até a máfia se fazia presente naqueles labirintos. Aguardavam um representante de Vil Teixeira e do General Garrastazu para tramar contra o Fluminense.

 

Para nos resguardar e manter o espírito forte, relemos a encíclica Pacem in Terris. Estávamos prontos para nos entregar, de corpo de alma, à libertação de João XXIII e de seus acólitos.

 

Encarcerado nos porões do Vaticano, fora impedido de estar ao lado dos pobres da terra e torcer pelo Fluminense. Sabedores desta injustiça, aproveitamos descuido da Guarda Suíça e penetramos por  corredores escuros. Neles, homens acorrentados pediam clemência por torcer pelo Flamengo e eram cruelmente supliciados. Um a um, iam sendo libertados. Em louvor a João XXIII, também tiveram assegurado o direito de torcer pelo time que desejassem. Poderiam ir e vir, pensar, crer, expressar, torcer, ficar em pé e, até mesmo, sentar. Quem quisesse poderia torcer pelo Flamengo em pé ou sentado, sem medo de ser discriminado, de ir para a cadeia, como o goleiro Bruno, ou de cair para a segunda divisão.

 

O próximo passo, naquele lúgubre labirinto, seria arrancar dos subterrâneos do Vaticano os teólogos da libertação, romper os muros, as grades, a ostentação das igrejas e retirar das masmorras o Papa João XXIII.

 

Com a ajuda do cachorrinho vira lata, mascote do Fluminense, conseguíamos nos conduzir naquele ambiente soturno. Havia passagens tenebrosas para a Inquisição, para o apoio ao nazismo, para a perseguição de judeus, ciganos e hereges. Por fim, conseguimos localizar a cela e o catre onde Sua Santidade padecia. Estava debilitado, mas sentia-se muito feliz pelos avanços científicos, pela melhoria de padrões de vida, pela nova consciência efervescente, pelas lutas de emancipação popular e pela libertação de seus prosélitos. Externou suas impressões sobre o mundo contemporâneo, elogiou Muricy Ramalho, reforçou seu apreço ao Fluminense e abençoou a todos em nome do socialismo. Poderíamos, então, seguir tranqüilos para a Paraíba.

 

Passados dois dias, estávamos privando da hospitalidade e da salutar companhia de João Otávio, seu melhor e mais sábio discípulo.

 

Semanas antes, em abnegado esforço missionário, percorreram ruas ermas de metrópoles e o vazio dos shoppings. Resgatavam meninos das drogas e pessoas sem alma do consumo compulsivo. Depois peregrinaram por vastos territórios do México e da América Central para conter esquadrões da morte e o narcotráfico. Agora, estes santos homens iriam ao estádio do Engenhão, no Rio de Janeiro, para abençoar a torcida tricolor e livrar o Fluminense das forças do além.

 

Para não causar constrangimentos, picuinhas ou invejas, consultamos todos textos sagrados. Constatamos o que estava dito: Nenhuma restrição há para inibir as forças do mal ou do além e torcer pelo Fluminense.

 

Portanto, estávamos cientes de que não haveria censura ou interdição. O censura, o Papa João XXIII e João Otávio, poderiam exercer livremente seus santos poderes contra Vil Teixeira e as forças do mal. E assim, colocamos encíclicas no bornal, viola no saco e metemos o pé na estrada.

 

Agora, o Papa João XXIII e João Otávio teriam uma nova e árdua missão pela frente: Frear a queda livre do Fluminense, coibir os abusos do marketing esportivo, de patrocinadores e a insidiosa ação de Vil Teixeira, que conseguira, nas últimas rodadas do campeonato, infiltrar agentes no time do Fluminense.

 

De modo incompreensível, o time estava minado por cabeças de bagre, por sanguessugas, por zagueiro do time adversário e por adereços incompatíveis com o uniforme do Fluminense. Havia máscaras, batom e sapatos de salto alto. Jogadores exigiam atuar com minissaia e calcinhas de renda. Havia um centro avante contundido que praticava surf de madrugada nas praias de Belo Horizonte. Um portuguesinho que resolveu enfurnar 650 mil quilos de ouro no bolso e não conseguia sequer dar um andar, de tão pesado que estava.

 

Pior do que tudo isto, a fome súbita e terrível que acometeu o goleiro. O coitado não podia ver um prato feito. Um sanduíche de mortadela, tal seu apetite. Compulsivo, saía altas horas da noite à cata de galináceos em todos terreiros da cidade. Quando entrava em campos de futebol, famélico e afoito, engolia frangos, sofregamente.

 

Em condições tão adversas, precisávamos da proteção do Santo Homem. Em sua generosidade e perseverança, apesar de cansado de tantas e perigosas jornadas, o Papa João XXIII acedeu a nosso convite. Convocou seu discípulo João Otávio para mais esta peregrinação. Juntos, atendendo nosso pedido, ajudariam o Fluminense.

 

E assim, metemos o pé na estrada.

 

Caminhamos três dias e três noites, sob sol e frio, em jejum, com chagas nos joelhos, com marcas do látego nas costas, com as solas em carne-viva e calos de alparcatas de couro cru nos pés. Apesar de tantos flagelos, sentíamos os espíritos revigorados Revitalizados  pela fé, pelo martírio e pela penitência tínhamos certeza de que venceríamos as forças do além.

 

Por fim, às 11 h e 57 min, do dia nove de setembro de dois mil e dez, chegamos à Estação da Central. Ali, onde. no dia treze de março de mil novecentos e sessenta e quatro. realizara-se o comício que ensejou a precipitação do golpe militar, promovemos um ato cívico em defesa da democracia, do direito de torcer, da paz nos estádios e da comunhão de todas torcidas. Advertimos, porém, que não baixaríamos a guarda. Precisávamos estar atentos às tramóias de Vil  Teixeira e às emboscadas do General Garrastazu.

 

Na Estação da Central, percebendo que homens sentiam fome de justiça e apetite na hora do almoço, o Papa João XXIII fez uma homilia, abençoou o pão de cada dia, os pobres e humildes trabalhadores usuários de trens da Central do Brasil, privatizados por FHC.

 

Este ato de solidariedade cristã foi comovente. Meninos e meninas de rua, que se refugiam no campo de Santana, buscaram acolhida. Moradores de rua chegavam de todos os bairros do Rio. Homens e mulheres desempregados viam um sinal de esperança. Trabalhadores, sem dinheiro de transporte para retornar para suas casas, acercavam-se do Papa. De repente, não éramos apenas três. Milhares e milhares de excluídos e marginalizados, acompanhavam-nos na longa caminhada.

 

Seguiríamos em passeata pela Presidente Vargas, abraçaríamos o Maracanã, interditado por Vil Teixeira, e tomaríamos o rumo do Engenho Novo.

 

Motoristas largavam seus automóveis e aderiam à caminhada. Cadeirantes, idosos, portadores de necessidades especiais sentiam-se encorajados e se integravam a este magnífico caudal.

 

O transito não fluía e até os aviões paravam no ar. Porém, motociclistas, pilotos de helicópteros, ascensoristas, condutores de metro, transeuntes e  moradores do Rio não estavam irritados. 

 

 Reconheciam a grandeza desta causa e se solidarizavam com os pobres, os humildes e os torcedores do Fluminense que seguiam a pé para o Engenho Novo.

 

Quando o sol caia, chegamos ao Engenhão. As vielas estreitas e a penumbra da tarde eram o cenário propicio para novas ciladas. Mas a força das grandes massas se impôs, inibiu a violência nos estádios e ocupou as ruas.

 

No entanto, General Garrastazu, seus torcionários e sequazes do marketing esportivo mantinham-se entrincheirados. Aturdidos, porque não viéramos de trem, ficaram confusos. Não lhes restava outro recurso além de estimular o terror e a violência entre torcidas, provocar lesões em jogadores do Fluminense, envenenar seu mascote, alimentar cizânias entre amigos, pagar propinas para juizes ladrões, disseminar mentiras, desacreditar nossas superstições  e impedir que pobres torcedores entrem em estádios de futebol regiamente reformados.

 

Agora estávamos temerosos de que o General Garrastazu seqüestra-se o Papa João XXIII, arrastasse Sua Santidade para o DOI_CODI para submetê-lo a novos suplícios. Temíamos que Vil Teixeira interditasse seus santos poderes, como interditara tantos estádios. Receávamos que impedisse a ação de João XXIII, como ousa impedir que pobres e desdentados entrem no Maracanã.

 

Porém , a imensa passeata, transpôs todas as adversidades e estávamos às portas do Engenhão.  Contando com o resoluto apoio de Plínio de Arruda Sampaio, tínhamos conseguido deter as forças do mal.

 

A profusão de bandeiras tricolores anunciava a chegada do papa. Para alegria geral, todas as torcidas do Rio de Janeiro, estavam irmanadas. Além de eventuais diferenças, defendiam a dignidade do futebol brasileiro.

 

Milhares de bandeiras vascaínas, botafoguenses, rubro negras, vermelhas e brancas se confraternizavam. Torcedores do Canto do Rio, do São Cristóvão, do Olaria, do Bonsucesso e do Madureira retiraram camisas rotas do armário e foram ovacionar o time do Fluminense.

 

Todos se regozijavam da cordialidade restaurada. Nos bares de esquina havia lugar para a gozação e conversa fiada. A cordialidade voltara às ruas e a fraternidade, anunciada nas soleiras das casas dos subúrbios do Rio, também ocupava o estádio.

 

.Pressionado pela alegria das massas, o juiz retardou o inicio da partida. Contrariando imposições da Rede Globo, incorporou-se à massa de torcedores que ouvia João XXIII, João Otávio e Plínio de Arruda Sampaio. Numa demonstração de grandeza, os jogadores do Ceará também aderiram a essa iniciativa. Num ato de deferência ás grandes massas, cantando o hino do clube, saíram do estádio uniformizados e foram às ruas.

 

 Lá, em festa, aguardava-os a torcida tricolor de braços abertos. Em homenagem ao Santo Homem e a Plínio de Arruda Sampaio, ninguém adentrara ainda no estádio. Com os corações nas mãos e genuflexos, trezentos mil quatrocentos e trinta e dois torcedores do Fluminense aguardavam o final do discurso e a benção do papa. Somente às três horas e trinta e dois minutos da madrugada, todos retornaram ao estádio.

 

A partir daí, respeitando o sono dos inocentes e a aflição que reina nos estádios, fez-se sepulcral silencio. E ante o silencio, aconteceu o óbvio. Diante da proteção de João XXIII e de João Otávio, outro não poderia ser o resultado.

 

Para alegria dos torcedores e pela dignidade do futebol brasileiro, as cinco e meia da manhã do dia seguinte, obtivemos, enfim, a décima segunda vitória.

 

O Fluminense venceu por três a um.

 

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG


Data: 09/09/2010