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Artigo - As afinidades eletivas de Tunico Forniqueiro, de Cabaceiras, e John Fritzgerald Kennedy, de Massachusetts

Wagner Braga Batista

 

Impunha-se uma decisão. Tunico Forniqueiro estava prestes a tomar uma drástica atitude.

Casualmente, enquanto descansava à sombra de um umbuzeiro, tivera um choque. Ao ler uma revista, O Cruzeiro, deu-se conta de que, na sua cola, havia um sujeito, chamado John Kennedy, que morava em Massachusetts, nos Estados Unidos.

 

Imediatamente supôs que se tratasse de um fã. Um jovem adolescente, refém de uma obsessiva admiração, que, tomando conhecimento de sua existência e da sua jumentinha Mary Lynn, em Cabaceiras, resolvera adotar seu estilo de vida. Tudo levava a crer que uma recôndita paixão subitamente viera à tona. Condescendente, achou normal que o tal de John Kennedy estivesse apaixonado pela sua Mary Lynn

 

Ao ver o retrato do vulgo, mudou de idéia. Tratava-se de um homem maduro e bem apessoado. Chamou seu compadre Biu das Cabritas e confidenciou:

Cumpadre, este homem é um cabra vadio e escolado, quer levar minha jumentinha. 

 

Ensimesmado, não sabia como, o tal de John Kennedy tomara conhecimento de seus hábitos e costumes. Segundo ele, pelo que depreendera da reportagem, enrabichado por Mary Lynn, resolvera adotá-los com segundas intenções. Pelos quatro cantos do município, denunciava o imitador barato, que incorporara seus tiques, seu sotaque paraibano, suas manias, seus hábitos alimentares, sua paixão e a mesma compulsão pela jumentinha.

 

Segundo Tunico, o desafeto ganhara espaço na imprensa mundial e agora se valia da projeção alcançada para conquistar sua Mary Lynn.

 

Aquela notícia causava-lhe dores de cabeça, descontrole emocional, piriri, afetava até seu desempenho afetivo e sexual. Sentia-se ultrajado em seus sentimentos e ferido em sua honra. Revoltado, por causa do iminente assédio à Mary Lynn, integrou-se á campanha contra a Aliança para o Progresso.

 

Um ativista do Partidão, disse-lhe que se tratava de uma solerte ação do imperialismo ianque. Insidioso, acrescentou que, certamente, naquela hora, o tal de John Kennedy, estaria passeando de lancha e desfrutando de uma praia em Miami. Porém, para conquistar Mary Lynn, dir-se-ia admirador da cultura nordestina, estaria chupando umbu, comendo rapadura com farinha e, talvez, estivesse ouvindo até um disco de Jackson do Pandeiro.

 

Tunico, inconformado, mostrou-se sensível ao proselitismo nativista, e, não fosse devoto de Nossa Senhora das Dores, teria ingressado nas fileiras do PCB naquele período de convulsões sociais.

No entanto amargurado, dia e noite, ficava remoendo: Por que o tal de John Kennedy foi se fixar logo na minha jumentinha?

 

Depois, pensou.

 

O tal de John Kennedy, de Massachussets, era como ele. Dormia e acordava todos os dias. Tinha dentes, olhos, nariz e boca. Comia, bebia e respirava. Como todo ser humano, dotado de três pernas e quatro braços, era natural que tivesse as mesmas compulsões.

 

Resignado, concluiu que ambos eram loucamente apaixonados pela mesma jumentinha de Cabaceiras.

 

Contudo, não conseguia admitir Mary Lynn nos braços de outro homem. Passava dias e noites com os olhos marejados, rememorando seus ritos de iniciação. Sentia-se enciumado e atraiçoado por um desconhecido, que insinuava publicamente seu amor pela jumentinha de Cabaceiras.

 

Andava muito angustiado, quando, certo dia, defrontou-se com um cartaz de cinema. Havia imagens e fotos, por todo lado. Para sua surpresa, viu com seus próprios olhos que sua amada Mary Lynn, agora era atriz de cinema.

 

Ansioso aguardou durante meses a chegada do filme à Cabaceiras. No dia da exibição, as cinco da manhã já era o primeiro da imensa fila que se formara à frente do Cine Plaza. Queria ver sua jumentinha, pela primeira vez, num filme de faroeste.

 

Na matinê de domingo, postara-se à frente de todos. Acocorado, anterior à primeira fila, seus olhos não desgrudavam da tela. Pulavam de um lado para o outro. Tontos com a estonteante Mary Lynn, a jumentinha que tanto tempo ocupara sua imaginação e agora escapava de seu olhar.

 

Subitamente, a sessão foi interrompida. Deram-se conta de que as grandes planícies do oeste americano e Mary Linn não cabiam na tela do cinema. Chamaram o dono do armazém e pediram quatrocentos e quarenta lençóis.

 

Fizeram um grande mutirão para que todos pudessem assistir à magia do cinema e à grandiosidade do evento. Costurados à mão, um a um, os lençóis foram célere e cuidadosamente emendados na tela. Todos agora podiam ver a matinê, o Grand Canyon e os grandes seios de Mary Lynn.

 

Tunico via pela primeira vez a sua jumentinha com sorriso lascivo e com cabelos oxigenados. Remexia-se, voluptuosa, dentro daquele vestido vermelho, colado no exuberante corpo. Ele e ela estavam literalmente molhados. Ela se remexendo e ele se contorcendo de cócoras, em meio às pulgas e aos gritos da platéia.

 

A imagem ampliada, graças aos quatrocentos e quarenta lençóis, exibia aqueles seios enormes, abrigava generoso decote e dava passagem ao Grand Canyon. Por eles passariam também trezentos e doze homens da sétima cavalaria, uma tribo inteira de índios apaches e o inebriado Tunico Forniqueiro.

 

Nos seus delírios, apesar da discriminação racial, infiltrara-se entre índios e mestiços, conseguira atravessar o Grand Cannyon e se abrigar sob o decote de Mary Lynn.

 

A partir deste dia, o cinema e a jumentinha Mary Lynn tornaram-se obsessões e sua vida um tormento.

Dormia e sonhava com Mary Lynn. Acordado, surpreendia-se em convulsões noturnas e devaneios, penetrando no Grand Cannion, por causa de Mary Lynn.

 

Seus delírios induziram-lhe a recriar o cenário do Grand Canyon com jardins suspensos da Babilônia, em plena Cabaceiras. Mergulhava dia e noite e dia em sua plantação de Pheretima hawayana para juntar dinheiro. Por fim, conseguira dez mil contos de reis.

 

Encomendou três dúzias de desertos, um rio caudaloso e monumentais blocos de mármores de Carrara. Contratou um pedreiro para talhar leões alados e zigurates. Convidou roteiristas de dramalhões mexicanos, atores italianos, cantores de tango, bailarinas de can can, vigaristas de cabarés, dançarinos de mambo, canastrões e heróis de esquecidas chanchadas. A seguir, convocaria a sétima cavalaria e várias tribos de índios para contracenar com sua jumentinha Mary Lynn.

 

Insatisfeito, dedicou-se também ao estudo da língua inglesa para se corresponder com David W. Griffith. Queria fazer um filme épico sobre o nascimento da jumentinha no agreste paraibano.

 

Durante três anos trocaram cartas diariamente. Rogou que dirigisse Mary Lynn, mas, apesar de suas insistentes cartas, ligações telefônicas e perorações, não conseguiu demover o Griffith de suas crenças. Simpático à Ku Klux Klan, não se arriscaria a realizar um filme no nordeste brasileiro, nem tampouco dirigir uma jumentinha.

 

Graças a esse acidente de percurso, Tunico Forniqueiro, autodidata e batalhador,  tornou-se produtor e diretor de cinema em Cabaceiras. Sua trajetória ascendente foi objeto originalíssimos estudos de André Bazin, Henri Agel, Paulo Emilio Salles Gomes e de um número especial do Cahiers du Cinema.

 

Na década de 1970, premiado com o Leão de Ouro, em Veneza, o Urso de Prata, em Berlim, a Palma de Ouro, em Cannes, recusou um Oscar em protesto contra a escalada ditatorial na América Latina, o golpe militar no Chile e a morte de Salvador Allende.

 

Sua jumentinha, Mary Lynn, também se politizou. Tornou-se militante de movimentos sociais e empenhava-se na defesa da emancipação da mulher. Pelo mundo afora, destacou-se em eventos culturais denunciando a intervenção norte americana no sudeste asiático. E em plena ditadura militar, a jumentinha corajosamente percorria o Brasil acusando a violação de direitos humanos, o sindicato do crime, o avanço da prostituição e as profundas desigualdades sociais no país.

 

Com o passar do tempo, Tunico amadurecera bastante.

 

Compreendeu a natureza da compulsão sexual de John Kennedy, de Masachussetts, não mais se sentia  angustiado com ciúme de Mary Lynn e se deu conta de que tinham algo em comum. Afinal, não só amavam a jumentinha, eram também fascinados pelo cinema.

 

Graças à leitura casual da revista “O Cruzeiro” e às afinidades eletivas de homens tão diferentes, surgira um novo ciclo de cinema no nordeste. E assim, uma pequena cidade da Paraíba, expôs ao mundo e eternizou sua Marilyn de Cabaceiras.


Data: 08/09/2010