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Artigo - O novo complô contra o Fluminense e o adiamento do ritual da vitória

Wagner Braga Batista

 

Antes de ir para o Maracanã, apressado e míope, passei no camelódromo.

Com a visão ainda precária, por precaução, comprei sete óculos. Um para perto, outro pra longe.  Um para o lado esquerdo, outro para o direito.  Um para ver pra baixo, outro para cima. Quase esquecia os óculos para ver pra dentro.

Queria ter plena certeza do que via e não poderia deixar de comprar o indispensável radinho de pilha.

Um amigo já me dissera: O que olhos não vêem o coração não sente. Porém, retruquei:  Não se fecha os olhos ao coração, porque o coração não mente.

Eu queria ver e ter a certeza do que via. Além de me assegurar do que os locutores irradiariam.

Tampouco queria perder a dupla grandiosidade do espetáculo. A que advinha do campo e aquela que aflorava da narrativa dos locutores de rádio.

Num mundo de mitos, de falsas verdades e virtuais realidades, precisamos encarar criteriosamente todos os fatos. Examinar as entranhas dos sapos e descobrir o que nos dizem as suas vísceras.  Ou seja, a essência do fato.

Hermenegildo Lukacs, técnico da seleção húngara de 1954 e filósofo tricolor por vocação, em outros tempos, já nos dizia:

Contrariando a ciência e a literatura, o futebol é único espaço em que as realidade se misturam e se confundem. Não falam por si. Isoladamente não tem força alguma. Dependem umas das outras e se socorrem mutuamente de fantasias e de delírios de torcedores.

Portanto, no futebol nenhuma realidade é mais forte. No campo, falam igualmente as emoções, as ficções, as aflições e as fantasias geradas nas arquibancadas.

Desabrocham de corações ardentes e mentes de torcedores aflitos para despencar de arquibancadas sobre o gramado. Caem como corpos pingentes, voluptuosamente, das arquibancadas. No campo adquirem vida. Tornam-se realidades independentes, conflitantes e inacreditáveis.  Mentem aos olhos, enganam as mais acuradas visões e visionários.

Por isto são necessários sete óculos para ver cada minuto do jogo. Para confrontar meticulosamente as duas realidades que se apresentam aos olhos. A realidade imaginária que viceja no campo e a realidade verídica que está sendo desenhada imaginário dos locutores de rádio.

Munido de sete óculos, de binóculos e da grande bandeira, encomendada pelo Bonates, não esqueci de levar dois quilos de  superstições  no bolso. Só assim me sentia confiante e confortável. Poderia seguir tranqüilo em direção a mais uma vitória do tricolor.

Porém,  o dia seria ingrato.

E assim se inicia o recordatório do dramático jogo entre Fluminense e Vasco, precedido da trama sinistra do General Garrastazu e de quarenta e três Euricos Mirandas, que ainda não havia chegado a termo.

Confiantes de que mais fortes são os poderes do povo, de que torcida tricolor e a dignidade do futebol estavam do nosso lado evitaríamos imprevisíveis desfechos.

Ao chegar ao estádio, havia oitenta milhões de torcedores as suas portas. Dentro duzentos e trinta milhões ocupavam todos os degraus, cada milímetro dos assentos. Nenhum lugar a mais, nem a menos nas gerais e nas arquibancadas. O estádio estava lotado.

O General Garrastazu e os quarenta e três Eurico Mirandas construíram altos muros para evitar que torcedores pobres, humildes e marginalizados tivessem acesso aos estádios.  As muralhas de Garrastazu tentavam impedir trabalhadores e torcedores de dar curso as suas emoções, desenvolver consciência crítica e defender um mundo melhor.

Porém, os torcedores se anteciparam

Ávidos de ver o fascinante futebol do Fluminense, aliaram-se à Vanguarda Torcedora do Proletariado- VTP. Ocuparam todos o estádio e todos assentos com cinco dias de antecedência. Levaram barracas, garrafas d’água, marmitas, esteiras e bandeiras tricolores. Com a adesão dos sem teto e dos sem terras, acamparam nas arquibancadas e no gramado aguardando o ritual da definitiva vitória.

Esta magnífica ocupação impediu que o êxito de General Garrastazu e dos Eurico Mirandas.  

Do lado de fora, os retardatários que não se integraram à vanguarda torcedora do proletariado, mantinham-se tristes e apreensivos.

Faziam promessas e profissões de fé na vitória tricolor, mas não podiam ter acesso ás arquibancadas. Penavam também por conta da lei seca. Juntamente com 80 milhões de excluídos, defrontavam-se com esta ignominiosa lei que proíbe todos aqueles que vão secar o Fluminense de beber cerveja nos arredores do estádio.  Porém, os torcedores do Fluminense, com sua generosidade peculiar, não se importam. Permitem que, todos aqueles que vão secar seu time, bebam cerveja. Mas vejam vocês, meus amigos, esta lei é inepta.

Estádios não tem arredores, posto que o mundo é apenas um grande e incomensurável estádio. Todos espaços do mundo, os quarteirões e ruas são partes deste grandioso estádio. Todos quadrantes da geometria e da geografia reduzem-se aos estádios. Fora deles, não há emoções, vida inteligente e corações ardentes na face da terra.

Assim, todos torcedores  tiram proveito do conflito entre o que dispõe a lei e a realidade de fato. Ficam em comunhão bebendo cerveja. Botafoguense, vascaínos, tricolor ores, banguenses, americanos -  torcedores do Amériquinha- e todos os times do Rio assistindo TV e consolando os confrades urubus por outra derrota. Que tristeza!

Enfim, chegara a hora do jogo. Eu e oitenta milhões de torcedores excluídos , continuávamos do lado de fora. Uns em pânico choravam copiosamente, outros maldiziam os torturadores, Euricos Mirandas e o general Garrastazu.

Instalava-se a falta de perspectiva, de consistência ideológica, de vigor revolucionário e crítico da vanguarda, quando, para espanto e alivio de todos, a bandeira tricolor do Bonates transformou-se num grande tapete mágico.  E assim, o tapete voador levou,  um a um, os oitenta milhões de torcedores excluídos para as marquises do Maracanã.

Lá, ofuscados pelas luzes dos holofotes, pela lua cheia e pelo brilho do Fluminense,  ficamos aboletados e eufóricos assistindo  ao jogo.

Víamos também outra imagem do futebol.  Uma imagem que se contrapõe à violência nos estádios.

Milhões de amigos, de crianças, de jovens, de idosos e de casais, juntos e amistosos, trajando camisas de times adversários,  davam inequívoca demonstração de amor, de harmonia e de respeito mútuo.

Com a camisa única do terror, estavam, apenas, o General Garrastazu, Euricos Mirandas, a bandidagem legalizada  e o narcotráfico, esta horda do pensamento  único que tenta poluir e manchar a imagem do Rio.  

Porém, avessos à violência institucionalizada, lá estávamos,  aboletados nas marquises do Maracanã. Em alegre harmonia, as torcidas do Vasco e do Fluminense, a despeito da violência apregoada e da covardia.

Durante 90 minutos, duzentos e trinta milhões nas arquibancadas e oitenta milhões de torcedores aboletados nas marquises do Maracarã mantinham-se em incessante e intensa confraternização. Cansados de cantar e se confraternizar se exauriam.  Exaustos, quando houve os gols, não tinham forças e energias sequer para comemorar, diante de tanta confraternização.

Trezentos e dez milhões de torcedores, nenhuma briga, nenhum conflito, nenhum incidentes. E as torcida do Fluminense e Vasco , mais uma vez,  sentiram-se agraciadas. Venceram neste glorioso empate , porque, contribuíram para resgatar a cordialidade do velho Rio.

Mas este recordatório, no entanto, ainda cabem registros  ingratos.

 Meus amigos, depois de fulminante início de jogo, o Fluminense deu mostras de que fraquejava das pernas. O tal de Washington jogava como um zagueiro do time adversário. A bola batia em seu corpo e voltava para o campo do Fluminense. Parecia um saci com a perna amarrada. Não saia do chão.  Chutava para trás, para o lado e, insatisfeito, deitava-se no chão para cheirar a bola. Alguma coisa errada estava ocorrendo e ninguém sabia. Torcedores inquietos se perguntavam:  O que será?

Comentaristas das rádios e TVs, avisados por um par de Sherllock Holmes, denunciaram outro fatídico.

Um novo complô fora descoberto. Houvera mais uma trama do General Garrastazu, dos Euricos Mirandas e do crime organizado. Enquanto as duas torcidas distraídas se confraternizavam, conseguiram seqüestrar Muricy Ramalho, o homem de palavra.

Clonaram todo o time do Fluminense e puseram em campo cópias falsificadas de jogadores. Emerson era uma cópia pirata. Por isto, Conca não jogava coisa alguma.  Diguinho não entrava em divididas e o Deco, embaixo da trave, perdeu aquele gol, que minha avó de cem e dois anos e pesadas muletas faria.

Porém, por ironia do destino,  a cópia pirata de um jogador mascarado e chupa sangue tinha um desempenho melhor do que o original.

Por isto meus amigos, apesar dos setes óculos e dos binóculos, eu não tinha visto meu time jogar. A trama do General Garrastazu, ainda que parcialmente surtira efeito.

Aquele time que empatou com Vasco, definitivamente, não era o time do Fluminense.


Data: 23/08/2010