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Artigo - Os homens que não sentem frio

Wagner Braga Batista

 

Quando adolescente tinha um amigo, Ramon, que não dispunha de recursos para comprar agasalho. No rigor do inverno, batendo queixo, para evitar constrangimentos, costumeiramente, utilizava-se de um álibi: Homem não sente frio.

Lembro-me desta passagem ao mergulhar no inverno de Belo Horizonte e ver outros homens e mulheres sentindo frio.

Minas é um estado de alma. Seus sons e as linhas sinuosas de seus horizontes são paisagens inebriantes.  Em algumas cidades mineiras defrontamo-nos com a exuberância do passado e as contradições deste modernoso presente. Mas, aqui faz frio.

Daqui guardo a lembrança de companheiros revividos e de fantasmas extraordinários, saindo de casarões coloniais, das tabernas de Ouro Preto e das névoas da História. Regozijo-me do bom papo e de reminiscências que não se exaurem no tempo.

Há muito que se ver e se apreciar em Belo Horizonte. 

Poderia discorrer sobre os museus, principalmente o Museu de Ofícios. Falar das admiráveis feiras de artesanato e de plantas. Da diversidade e das peculiaridades do mercado central. Porém, o que mais me fascina é o Parque Municipal Américo Reneé Gianetti, encravado no coração da cidade. 

Esta preciosidade foi concebida no final do século XIX,  inspirada em modelos de parques franceses com orquidário, vastos jardins floridos, vários lagos, chafarizes e grandes áreas verdes, gradativamente cobertas pela densa vegetação tropical. 

Fundado em 1897, oferece ainda hoje uma visão singular da Belle Epoque, por meio de coretos, muradas e gradis, bem como pelos recortes físicos e naturais que definem ambientes acolhedores e recantos reservados a possíveis namoros furtivos  no amplo espaço público.

Nas alamedas, à semelhança dos calçadões atuais, certamente as promenades expunham a graça de adolescentes e as vaidades provincianas na transição do século XX.

O parque central de Belo Horizonte é um oásis num deserto de cimento armado. Ali moram as maravilhas que uma cidade que se moderniza tende a esconder. As enormes e frondosas arvores cercadas de dezenas de espécies de arbustos e plantas nativas.

A cidade vai se tornando cada vez mais cinzenta. Ante a impregnação da poeira do transito e do minério de ferro, trazido pelo vento, o verde do parque é uma dádiva.

Mas não só o verde sobressai no parque. Compartilham seu espaço, o Teatro Francisco Nunes e o Palácio das Artes. Nele, também está instalado o  Centro Mineiro de Artesanato.  Neste universo de cultura e arte há muitas obras a se ver. Mais a coisa mais bonita do parque é aquela mais execrada pelos cultores da beleza mercantilizada.

O parque é o refúgio de pássaros, que começam a escassear nas rarefeitas matas mineiras. Pelas manhãs e ao cair da tarde os pássaros fazem escarcéu. A revoada e os gritos inconfundíveis de bandos de  maritacas, pousados sobre as palmeiras,  chamam a atenção de todos.

O parque municipal serve também como refúgio para seres humanos que não têm lugar na sociedade excludente. São os marginalizados e pedintes que nele encontram abrigo. No parque também se guardam da execração e dos olhares lancinantes daqueles que lhes imputam a responsabilidade pelo fracasso.

São pessoas bem vestidas, alimentadas e saudáveis que os vêem como  vagabundos e inempregáveis.  São mulheres e  homens agasalhados sob idiossincrasias, que verdadeiramente não sentem calor, nem frio.

No país, há 37 milhões de pessoas que, semanalmente, não podem pagar transportes urbanos para voltar para casa todas as noites.*  Muitas, dormem sob marquises nas ruas. Não são necessariamente desempregados, pedintes ou moradores de ruas. São trabalhadores cujos salários não cobrem as despesas diárias de transporte. Quando cai a noite, sujeitam-se a deitar em locais infectos sobre caixas de papelão ou sobre noticiários sem espessura. Ficam nas ruas, expostos à violência e ao frio noturno.

Como meu amigo  Ramon, na solidão dos becos e marquises, também sentem vergonha de sentir frio.

Quando vou a Belo Horizonte, o parque torna-se o meu quintal. Também é o meu refúgio, apesar do frio. Ali passeio e falo comigo mesmo, ouvindo desabafos de pássaros e de curiosos batráquios, que interferem no meu monólogo, quase silencioso. 

Neste inclemente inverno, esporadicamente me beneficio do sol e privo do calor do frio.

O Parque Municipal de Belo Horizonte é lindo. Mas há uma beleza maior dentro dele, que diariamente se esconde de nossos olhos.  É calor humano de homens e mulheres marginalizados.

Solidários, juntam-se no interior do parque e compartilham suas privações, porque não sentem vergonha de sentir frio.

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG

 

*O preço da volta para casa: País tem 37 milhões de pessoas que não têm dinheiro para pagar a passagem regularmente, O Globo, País, 17 de agosto de 2010, p 3.


Data: 20/08/2010