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Artigo - Os santinhos e a utilidade do voto

Wagner Braga Batista

 

Quando eu era criança, os santinhos, essas propagandas com nomes e números de registro eleitoral de candidatos, não eram tão sofisticados.

Eram feitos com aparas de papel em gráficas rudimentares, impressos em preto e branco, com tipos, via de regra, danificados, em apenas uma face do papel. Às falhas dos tipos de chumbo e da impressão tipográfica somavam-se habituais erros ortográficos e de gramática, quando não do próprio nome do candidato. Distribuídos a mãos cheias, também eram lançados de ônibus, de caminhões, dos poucos automóveis que existiam e de teco-tecos, pequenos aeroplanos que, felizmente, ainda sobrevoam nossa imaginação.

Como o disciplinamento da propaganda eleitoral era precário, havia santinhos e santões por todo lugar. Tal qual na atualidade, o poderio econômico dava as cartas do jogo.

Imaginava, então, que os santinhos fossem as cédulas eleitorais. Seriam distribuídos previamente para facultar o voto dos adultos. Seriam as cédulas depositadas em urnas como os verdadeiros votos.   

Na minha ingenuidade, associava a utilidade do santinho à garantia do voto.  Para mim, então criança, a utilidade deste voto era puramente lúdica. Residia no fato de que poderíamos brincar com santinhos, com o suposto voto que seria utilizado pelos adultos.

Poderíamos rabiscá-lo, rasurá-lo, recortá-lo e, até mesmo, fazer pequenas gaivotas que atirávamos de janelas de edifícios. 

Para a criançada, antes e depois da eleição, a utilidade do voto não era motivo de preocupações. A conversa era outra. A garotada queria saber de votos. Queria, apenas, santinhos, que faziam sua, a festa eleitoral.

Formavam-se coleções, maços de santinhos, trocados, entre nós, como figurinhas de álbuns.

Neste contexto, os santinhos ou as supostas cédulas eleitorais tinham inúmeras funções. 

Ao final da eleição, além da poluição visual e da sujeira nas ruas, havia caixas de sapatos abarrotadas de santinhos, que ainda não tinham perdido a utilidade.

Enquanto despretensiosas crianças deleitavam-se a brincar com os santinhos, comerciantes revelavam seu pendor pragmático. Juntavam santinhos de todos candidatos e partidos. Em armazéns, quitandas, botequins e vendas, em quase todos os bairros, esses pequenos pedaços de papel eram utilizados na contabilidade miúda, para fazer registro de débitos e anotações corriqueiras.

E assim, candidatos e partidos sobreviviam na memória coletiva, em pequenas anotações, a possíveis reveses eleitorais.

As crianças menos aquinhoadas beneficiavam-se de várias maneiras dos santinhos.  Coloriam, faziam desenhos, rascunhos, pequenas estórias, bilhetinhos e pequenas animações. Involuntariamente, exercitavam suas habilidades na autoria cinematográfica com poucos recursos e nenhum custo. Desenhavam figuras toscas que, folheadas rapidamente, davam a idéia de movimento.

Graças aos santinhos e a estas precárias imagens em movimento, surgia um proto-cinema nas calçadas da vida e na imaginação da criançada.

Se o voto tivesse sido inútil, ao menos, os santinhos não foram  inutilizados.

No entanto, os santinhos também se prestavam a outras apreciações, nem um pouco desinteressadas.

A secular índole conservadora e autoritária de elites manifestava-se na apreciação dos santinhos. Para elas, melhor que não houvesse votos, santinhos, propaganda eleitoral, democracia, participação popular, eleição e política. Que o status quo fosse salvaguardado destas intempéries que exasperam as massas e provocam convulsões sociais. 

Porém, limito-me aos santinhos, ouso dizer, de imediato, que estas elites sentiam-se ressabiadas até com o nome dado a este rudimentar veículo de propaganda eleitoral. Com a apropriação indébita de um signo religioso para designar um artifício do mundo profano.

A utilização dos santinhos não era bem vista. Causava incomodo. Mas, não só isto desagradava elites ensimesmadas. Viam com desprezo, a qualidade destes impressos. Com seu viés discriminatório, identificavam neles a ignorância e o despreparo político de candidatos populares, execrados a partir de seus precários santinhos.

Nos santinhos, buscavam atentamente qualquer falha gráfica para depreciá-los. Esses detalhes avultavam aos seus olhos. Tornavam-se demonstrações cabais de incapacidade política. Como fiscais de quarteirão ou guardiãs da ordem pública, esmeravam-se em apontar erros ortográficos, imprecisões ou deficiências de impressão como indícios da inaptidão de candidatos populares para o exercício de mandatos de qualquer natureza.  

Se a impressão estava pouco legível ou borrada, se havia erros de grafia ou a sintaxe não estava correta, se o nó da gravata do candidato não estava acertado, se seu rosto não estava barbeado adequadamente ou se seu terno estava amassado, nada passava despercebido ao olhar minucioso das elites.

Para anular uma visão mais abrangente da sociedade e mais envolvente da política, elites conservadoras, ardilosamente, aferram-se a particularidades. A totalidade, a realidade social vista de modo abrangente, contrasta e se choca com seus interesses específicos e mesquinhos. Portanto, esta postura não é gratuita. As elites fixam-se em detalhes e no seu microcosmo. Deste modo, mantêm-se umbilicalmente ligadas aos seus objetivos imediatos e aos candidatos que os patrocinam.

Não é demais rememorar. Por intermédio daqueles veículos de propaganda rudimentares, preparados de modo incipiente e com parcos recursos, candidatos populares expunham sua cara ao olhar e ao tapa maldoso de elites presunçosas e coercitivas.  Qualquer formulação mal redigida ou deslize gramatical tornava-se objeto do olhar severo e da critica ríspida dos donos do poder.

Não perdoavam os avanços democráticos, a ascensão das massas, a visibilidade de partidos populares e as perspectivas reformistas que surgiam na linha do horizonte. Por isto, alimentaram o golpe de 1964 e sempre que possível ainda alimentam a ilusão em expedientes anti-democráticos.

As elites se servem da política quando a política serve aos seus interesses. Quando não, abjuram o jogo político e democrático.  Portanto, não pensem em ingenuidade política daqueles que são afeiçoados às tramas politicas. À pequena política.

Elites também fazem valer seu voto útil. É comumente utilizado para varrer do cenário político “essa raça”, partidos e candidatos identificados com demandas populares. Não é ociosa a lembrança da polêmica, que  rendeu processo judicial impetrado pelo Senador Jorge Borhausen, SC, contra o sociólogo Emir Sader.

Candidatos populares, que não contemplam seus interesses, nem correspondem aos seus anseios, são discriminados e execrados, não só ideologicamente, mas também pelo vezo cultural de elites.

Estes estigmas e rancores reproduziam-se na observação dos santinhos. Numa apreciação que cristalizava  uma visão elitizada da política, da cultura e da sociedade.  

À propaganda eleitoral adicionavam-se outras formas de discriminação tradicionais e corriqueiras, que inibiam a participação popular em várias esferas da vida social. Convém lembrar que, até a Constituição, de 1988, assim como as mulheres no início do século XX, analfabetos, soldados, cabos e marinheiros não tinham direito a voto.

Hoje o ardil é outro. Deslocam-se discursos, diferenças substantivas e contenciosos políticos em nome de uma falsa moralidade, que coloca quase todos candidatos num mesmo patamar em nome da ficha limpa.

O que é um requisito indispensável para o exercício político, torna-se um bordão, que cabe na boca de gregos e troianos, diante do lamaçal em que se converteu a atividade política em nosso país.

A desqualificação dos santinhos foi se tornando inócua e deixada de lado, porque agora quase todos se igualam em sofisticação.  Atualmente são coloridos, impressos dos dois lados, produzidos pelo marketing político, mais elaborados e finamente falsificados. É freqüente a leitura de perfis e de informações pouco ou nada condizentes com as práticas de muitos candidatos

Arrisco-me a dizer que crianças não se sentem mais atraídas ou tentadas a brincar com estes pedaços de papel pintados.

Por outro lado,  vejo-me órfão daqueles antigos santinhos. Mas, de repente, volto a pensar, não mais na sua utilidade, mas na utilidade efetiva do voto.

Distante daquele contexto, já não reproduzo a ingênua lógica dos santinhos. Nem, tampouco, desejo contribuir para que alguém utilize ou inutilize seu voto.

Venha a transformá-lo em instrumento de uma cruzada do bem contra o mal, em recurso de uma disputa que se diz plebiscitária. Que converta o voto num messiânico dispositivo que santifica personalidades, muitas vezes, indignas do voto.

Apesar do quadro político existente, faz-se oportuno reiterar que há alguns excelentes candidatos. Há, também, vários e valorosos partidos, bem como aqueles que são, apenas, repartidos e recompensados.

Para que não pairem desconfianças, creio que há candidatos de todo tipo. Sem sombra de dúvida, abre-se um largo espectro de opções. Que favorece escolhas bem sedimentadas de partidos e candidatos.

Essa ampla gama de opções sugere um olhar sobre o panorama político-eleitoral, que extrapola a visão plebiscitária. Que não impõe, necessariamente, o voto como um recurso estratégico, capaz de materializar tão somente a vitória daqueles que têm chances de ganhar.

Esta visão subtrai a virtualidade crítica do embate política. Limita o alcance do processo eleitoral.

Há poucos dias, era portador desta visão. Hoje, abro mão dela.

Em qualquer eleição, quem deve vencer não é o candidato, mas o eleitor e um projeto político consistente. Esta vitória se expressa por meio do direito de escolha, sem inibição, chantagem ou coerção. O que deve se afirmar é a perspectiva de realização de propostas políticas socialmente justas e viáveis.

Sob esta ótica, não há o chamado voto útil ou, como contrapartida, o voto desperdiçado. Há o voto consciente, aquele que faz valer o direito de escolha, mesmo em um processo limitado.  

A utilidade do voto só pode ser concebida como um procedimento que é indissociável da consciência e da dignidade do voto, da promoção, mesmo por meio de processos limitados, da crescente participação democrática.

O voto, não deve servir como instrumento de coerção. Que, por meio de sutis expedientes, iniba ou alije setores populares da participação direta ou indireta em embates democráticos.

Portanto, o voto não é um recurso instrumental, que se presta tão somente a eleger este ou aquele candidato, mas um procedimento que sinaliza potencialidades transformadoras da política.

A continuidade da luta política é que é verdadeiramente útil, principalmente para aqueles, que foram durante tanto tempo, mantidos à margem da política.

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG


Data: 19/08/2010