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Artigo - Os tempos do Éden e os homens que saíram da escuridão

Wagner Braga Batista

 

Diz-se que no Èden, no tempo da perfeição, os animais não tinham dentes.

Tinham línguas enormes, mas não conseguiam falar. Porém, para compensar esta limitação, comiam e bebiam até se refestelar.

 

Bebiam o leite que corria das pedras, fartavam-se com favos de mel e sonhos que caiam do céu.

 

No entanto, havia uma espécie de bicho brutalizado. Dizia-se que o homem, por ser o mais rude dos bichos, também, “era o mais atormentado, o mais mal alimentado e o mais brutalmente tratado” *

Por serem rudes e brutalizados, também, não deviam enxergar. E assim, todos os homens eram cegos. Mas, por um erro dos deuses, era o único bicho que conseguia falar.

 

O bicho, que era cego, conseguira reparar a desigualdade entre os bichos. Por reparar a desigualdade entre os bichos, os homens do tempo do Éden, foram privados de tudo. Por esta insolência intolerável, condenados a comer o pão com o suor de seu rosto e purgar sua culpa pelo ato de reparar.

 

Como castigo, foram amarrados num instrumento de produzir dor e sofrimento que, no tempo da perfeição, se chamava  tripalium. Ali ficariam purgando suas culpas milhares de anos. Tendo como direito, apenas sofrer e suar.

 

Mas os bichos que falavam, por causa da dor que sentiam, aprenderam a reclamar.

Reclamavam da dor, do sofrimento e de viver apenas para trabalhar. Denunciaram a crescente  desigualdade entre os bichos. Entre bichos sem cheiro, que tinham muito dinheiro, viviam para comer, beber, sem se preocupar  e aqueles que produziam, pouco comiam e tinham que trabalhar.

 

E as mãos rudes dos bichos rudes, condenadas ao tripalium , por causa da dor que sentiam, aprenderam a ver tudo aquilo que podiam tocar. Podiam também escrever e desenhar.

 

Inicialmente, eram garranchos e imagens, difíceis de interpretar.. Mas, assim como as coisas brutas que se tornam suaves, as rudes mãos, refinaram a visão do toque e ousaram desenhar as coisas da imaginação. Com o tempo, as rudes mãos que desenhavam, foram aprendendo a escutar o que lhes dizia o chão.

 

O chão falava de uma dor igual a dos homens. A dor da terra, dos rios e das pedras. Falava da dor dos ventos, que falavam outras linguagens, que os homens ainda não conseguiam entender. Com carícias, as rudes mãos que desenhavam, também aprenderam a ouvir as lamúrias de bichos que não falavam.

 

E o bicho homem de mãos rudes, ao falar com as coisas sem vida, inoculava vida nas coisas e se humanizava.

 

E assim os bichos que falavam, apesar da cegueira, adquiriram aptidões e virtudes. Descobriram que no Éden, no tempo das perfeições, havia muita violência gravada nas carnes dos bichos. Havia mentira no lábio dos deuses. Que as coisas chamadas belas, reproduziam a soberba e a inveja dos deuses.

 

E os bichos rudes, condenados a purgar, perceberam uma contradição. Estavam atados ao tripalium e não tinham culpas a expiar. Que no Éden, o tempo da perfeição, em meio à tanta fartura e ao suplicio dos homens, vicejava a cobiça, avareza e a opressão..As culpas que havia, cabia aos deuses expiar.

 

E os bichos que falavam, ousaram se libertar.

 

E os homens, diferentes dos outros bichos que não falavam, um dia, aprenderam a desatar os nós que os atavam ao tripalium e às coisas presentes. A desfazer elos de correntes, feitas de nada, que se acumulavam e se transformavam em correntes pesadas, que arqueavam seus corpos, que feriam seus ombros e que mantinham sua cabeça arriada.

 

Livres destas correntes, puderam olhar para cima, ver a luz e ouvir as linguagens de ventos que desconheciam.  Aprenderam também a conhecer e transformar. A superar tudo aquilo que era castigo, suplício, expiação ou nada.

 

Desamarraram as mãos presas ao tripalium e, agora, poderiam converter o tripalium num objeto de satisfação e prazer.

 

O que era castigo tornara-se alegria. O instrumento de exploração servia agora à emancipação dos embrutecidos bichos que falavam.

 

Os homens que aprenderam a aprender, aprenderam também a transformar o tripalium em instrumento de conhecimento e de autotransformação. Transformava bichos que falavam em homens que podiam enxergar.

 

E os bichos homens que falavam, que não carregavam luzes nos olhos e que tinham rudes mãos, descobriram, ao se ver e se transformar, que não havia Éden e um tempo da perfeição.

Que o tempo e a História eram um só lugar. Que a única coisa perfeita era sua imperfeição, com a qual, sempre, terâo que lidar.

 

 

* MARX, Karl O capital, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, Livro I Vol II p 784


Data: 11/08/2010