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Artigo - O dia em que Mané Garrincha não foi a maior celebridade no estádio

Wagner Braga Batista

 

Como dissemos, anteriormente, só há um super-herói autentico e fidedigno, o apelido.

O apelido é o super-herói ambivalente, que age contra os maus e os bon vivants. Contraria o politicamente correto e inibe as deletérias mãos invisíveis do mercado. Derruba pilantras de pedestais, desmonta falsos currículos, desfaz as chamadas carreiras brilhantes, desnuda forjadas biografias. O apelido não se detém frente aos grandes mitos. Desmistifica idolatrias, torna cristalinas as verdadeiras vocações, mas também desvenda recônditas e singelas virtudes.

Para aqueles que não acreditam em destino ou no determinismo histórico, resta um santo remédio: o apelido. O apelido corrige falhas do caráter humano e desvios de comportamento.

Como o super-homem, o apelido se transmuta de uma simples palavra, na boca de um simples homens para materializar na força de seus desígnios. Por isto, o apelido se reveste de força demolidora. É uma dádiva divina. Uma dádiva concedida apenas a alguns pródigos homens: os que colocam apelidos.

Frente a estes homens, não há escapatória. Aos picaretas não resta a dissimilação, a farsa e a hipocrisia. Só resta uma alternativa de todos pilantras, cumprir a determinação e a sina ditadas pelo  apelido.

O apelido salvará a pobreza do luxo e da miséria humana, bem como o mundo da miséria trazida pela riqueza.

Esta ação redentora, só cabe ao apelido. Poso que, o apelido antecede aos vaticínios e os preclaros catastrofistas que afirmam que o mundo não tem salvação. Pois, meus amigos, o mundo será salvo pelo apelido.

O apelido já lançou em praça pública um novo horizonte para a humanidade. Invocará um novo fiat  (faça-se) e usará a força da palavra mágica para salvar o mundo da hipocrisia, da opulência e da prepotência dos falsários. Trará a justiça para o seio da família e de todos os povos. Fará arrogantes, como o Dr Minhoca dos pés trocados, curvarem-se ante a força da sua palavra. Portanto, os indiferentes, os incrédulos e consumistas que se cuidem. Temam os apelidos, posto que terão que se resignar à determinação dos apelidos.

Amen. Assim seja..

E é bom advertir aos que conspiram contra o apelido. O direito e a legitimidade do apelido estão consignados, em ata do Santo Oficio, em 1624, que diz:

O apelido não é impropério,estrupício,vitupério ou palavrão. Não ofende a moral do cristão, nem tampouco a virtude de qualquer donzela. Per omnia secula ,  não se pode dizer que o apelido atente contra leis eclesiais, liturgias e outros rituais leis. Como coisas vulgares, o apelido é o recurso da chusma para se defender daqueles que lhe oprimem. Portanto, não há que se incluir o apelido no Index e cogitar de sua censura.

No entanto, os leigos pesquisadores e homens sagazes nos advertem. Reconhecem a virulência do apelido profano. Suas pesquisas revelam que não há safadeza  que escape aos seus olhos. Porém, por vezes, boas ações também se tornam alvos do apelido. Não conseguem se manter ao abrigo da ironia e da capacidade denotadora do apelido.

Disseram os pesquisadores, os apelidos impõem novos sentidos. Não há pressuposto teórico, conceito científico e filosófico que adquira a precisão do apelido. Título nobiliárquico, adjetivo ou predicação que tenha a grandeza de um vulgo, de uma alcunha ou de um apelido. Que possua a magnitude e a solenidade de um apelido, dito em voz alta no seio da família, numa roda de amigos ou no meio da multidão. Pode engrandecer, dignificar ou causar calafrios em almas cristãs.

É disto que trata esta estória.

Não há estigma maior na vida de um homem do que aquele imposto pelo apelido. Trauma maior na vida de um jovem do que o soar de um apelido, penetrando frequentemente em seu ouvido.

Só existe algo mais doloroso do que ser apelidado: é receber o apelido apropriado.

Apropriado de duas maneiras. A primeira porque retrata com raríssima felicidade e fidelidade alguma particularidade, quase imperceptível. As evidencias não importam aos apelidos, em sua operosidade não querem ser repetitivos ou redundantes. O que importa para os apelidos são as singularidades invisíveis daqueles que se dizem vítimas do apelido adequado ou apropriado.

A segunda apropriação é a pior desgraça de um homem de bem.  É a apropriação efetuada pela escória emergente. Pela plebe patrocinada pelo governo Lula. Pela rafaméia ordinária, pela laia imunda que infesta às ruas. Por esta chusma que invadiu o asfalto e os campos de futebol, maculou o nobre esporte bretão.

Para a desgraça dos homens de bem, o apelido é desvelador de suas hipocrisias. Para desdita de falsos moralistas, o apelido elevou as autenticas virtudes e  desqualificou a falsa moral.

O apelido converteu-se na arma da chusma indefesa contra a truculência dos arrogantes e a soberba dos indiferentes. O apelido é inclemente com a presunção dos doutos, a ostentação dos ricos e a vaidade dos tolos. Identifica e aniquila os pecados humanos e todas as deformidades do espírito.

 Repetimos: o apelido é um estigma doloroso e irreparável. A única atribuição que nos iguala na humildade e nos redime da falsa moral que veste a hipocrisia.

Para os hipócritas, narcisistas e vaidosos não há coisa pior. O apelido é mais doloroso do que os investimentos com maquiagem, manicure e salões de beleza. Pior do que a conta do publicitário pelos gastos com seu marketing pessoal. Do que o suor e as fantasias desperdiçadas com o personal trainer. Do que as cirurgias plásticas e lipoaspirações. Do que todo este alto dispêndio com o culto à vaidade. Do que a insônia provocada pelos atos de hipocrisia e pela dor de consciência.

Mas, infelizmente, as circunstancias históricas não selecionam as piores celebridades para ofertá-las aos apelidos. Por múltiplas determinações, permitem que o acaso dê as mãos ao apelido.

E aí, entra Dermevau Inocêncio nesta estória.

Dermevau fora nascido e  criado naquele pequeno logradouro em meio aos cururus, bichos de pé e tantas mazelas. Naquele pequeno logradouro que para atender às estatísticas do IDH  tornara-se uma cidade no dia em que caiu do céu um monumental estádio de futebol.

Era um pobre menino buchudo e bexiguento que jogava descalço. Escapara das garras da fome e da miséria, como também da escola e de abnegadas  professorinhas que iam a pé para o trabalho, corrigiam trabalhos de alunos, só iam dormir altas horas da noite e jamais faltavam às aulas. Não queria aprender a ler e a escrever. Ambicioso, só queria ser imbecil. Um imbecil cultuado, como Cristiano Ronaldo.

Este pobre menino tornara-se refém de ilusões criadas pelo marketing esportivo e pelas mãos invisíveis do mercado.

Na falta de gel, passava banha nos cabelos e ao invés de brincos de diamantes fazia brilhar seus  próprios atropelos. Por ironia do destino, Dermevau Inocêncio saiu da rua para o grandioso estádio. Destacou-se no futebol e se tornou o ídolo do grandioso Clube Pindamonhandubense do Arrebol. Um ídolo iludido pelo  por de sol.

Alto, pernas longas e esguio, tinha notável domínio de bola e agilidade incomum em jogadores de sua posição. Suas pernas longas projetavam-lhe no espaço e lhe forneciam impulsão no jogo aéreo. Dermevau Inocêncio era aquele ponta de lança que todos queriam ter no seu time.

Porém tinha um defeito, não sabia, ler, escrever e pensar.

Antes mesmo de sua estréia, já era cobiçado por clubes europeus, agentes do narcotráfico, empresários de agiotas, agiotas do marketing esportivo e pelo marketing  de ditadores benemerentes das mãos invisíveis do mercado.

No dia de sua estréia, gente de todo lugar chegava à Pindamonhanduba. 

As redes de TV também quebraram o monopólio da Globo para cobrir a estréia de Dermevau.

A cidade se notabilizava no mundo e acolhia pela primeira vez, chefes de Estado, o presidente da ONU, Barack Obama, caciques de vários partidos e tribos vizinhas.

Todos seus conterrâneos vestiam a camisa com o nome de Dermevau, com as cores do lugarejo, que um dia, certamente, seriam as cores da CBF.

Entre os ilustres presentes, também se encontrava o passarinho de Pau Grande, o colocador de apelidos.

O passarinho de Pau Grande era nada mais nada menos do que  Mané Garrincha, aquele que ensinara humildade aos homens e cambaxirras a voar. Aquele menino de pernas tortas  que saíra de uma fábrica de tecidos, para, na Copa do Mundo, em 1958, mostrar ao glorioso Exército Vermelho a verdadeira força do operariado. Aquele que jamais abandonara os amigos e o rincão que lhe conferira a honra de se converter num passarinho de Pau Grande.

Garrincha, o mestre dos apelidos, com sua voz inconfundível, lá estava. Postado nas arquibancadas, munido de apelidos latentes e indefinidos à busca de receptáculos. Antes mesmo de começar o jogo, via um trubufu e já botava apelido.

Assim fora em toda sua vida, retrucava um juiz ladrão sapecando apelido. Enfiavam-lhe botinadas e reagia com apelidos. Como uma cambaxirra inocente,  só sabia pular, driblar laterais esquerdos e botar apelidos.

Mas naquele dia, lá estava Garrincha, de prontidão na arquibancada, a postos para sapecar inapeláveis apelidos..

As traves ficaram com medo e os pé-frios não compareceram ao estádio. Os agiotas, batedores de carteira, cambistas, apostadores, viciados em mictórios públicos, essa ampla súcia de homens bem intencionados, escafedeu-se. Alguns pediram para ficar detidos na delegacia ao menos por um dia. 

Os quero-queros, aninhados atrás do gol, mudaram de paradeiro. Nem os urubus sobrevoavam o estádio com medo dos apelidos. 

Os bandeirinhas tremiam e o juiz apitava agachado, sob um cobertor, com medo que Garrincha reparasse seu fio dental, seus soutiens de oncinha e suas ligas vermelhas. Os frajolas da FIFA e os cartolas da CBF recusaram passagens aéreas, diárias, estadias e homenagens de praxe com medo do apelido.

Mas diante daquela a multidão, e do humilde Garrincha nas arquibancadas, só haveria um astro:  Dermevau, artilheiro de  Pindamonhanduba,  ídolo da galera e esperança tardia da CBF.

Porém, a desgraça de Dermervau fora estar naquele time, naquele dia e naquela hora. O que seria a glória de qualquer jogador converter-se-ia em seu maior infortúnio.

Parecia a apoteose de Dermevau. Havia marcado quinze gols, sofrido um pênalti , posto para chorar de vergonha três zagueiros carniceiros e a pobre senhora mãe do goleiro adversário. Cada vez que tocava na bola, tremiam os alicerces do estádio.

Dermevau, o ídolo da galera, já conquistara os corações dos torcedores do time adversário que perdia por 22  a zero. Sem sequer um gol de honra ou de consolação.

Cada gota de suor que pingava de seu rosto de Dermevau, torva-se a senha para o delírio e o clamor coletivo. Se imitasse Cristiano Ronaldo, ajeitando as calcinhas ou passando as mãos no cabelo, pulavam, de pronto, aos seus pés dez mil virgens extasiadas das arquibancadas. O frenesi era geral, por causa de Dermevau Inocencio.

No entanto aos quarenta e três minutos do segundo tempo, a vida lhe reservava desagradável surpresa.  Cuidem-se, meus amigos, com os 43 minutos do segundo tempo, seja onde for.

Recebera a bola na intermediária, dera um chapéu no volante, uma caneta no meia, lançara um fiu fiu pra galera em delírio e avançava imbatível pela ponta. Depois de driblar pelo menos quatro vezes os três zagueiros, entrara pela pequena área. Estava cara a cara com o goleiro, iria finalizar. Penteara o cabelo cinco vezes e depois de ajeitar as sobrancelhas estava pronto para fulminar o pobre goleiro.

Tudo parecia um céu de brigadeiro, seria o verdadeiro transe coletivo. Entraria de pés descalços no céu ou como convidado de honra em qualquer paraíso. Foi, então, que ocorreu o imprevisto. Uma voz incomum  calou o estádio.

E o silencio se fez por ordem do apelido. 

Só, então, soou o grito, abalando os tempos eternos e os pilares terrenos do estádio. A voz solene de mane Garrincha, que fazia ruir todos mitos.

Chuta! Chuta!  Chuta, Siriema !

Aquela voz converteu o transe apocalíptico no delirante riso da galera enfeitiçada. Pronto, estava posto, para sempre, por Mané Garrincha, mais um indefectível apelido.

Aquele grito, remetendo à ave pernalta, soou como uma irreversível sentença. Aquele apelido ecoou  em  consciências cristãs, pouco afeitas ao sarcasmo e ao riso, que se dispuseram a pagar mil penitencias para não conter o riso. Os quero-quero e urubus davam gargalhadas. Os desdentados e humildes mijavam de rir nas inabaláveis estruturas do monumental estádio.

Tudo por causa de uma siriema, um pássaro pernalta que ninguém conhecia.

Aquela sentença fora fatal. Depois daquele dia não havia mais Dermevau Inocencio, a glória de Pindamonhanduba e dono do chute mortal. Depois da sentença de Mané Garrincha só restavam, penas, pernas e gritos de siriema, para lá e para cá.

A siriema que não existia, tornara-se uma celebridade.

Aparecia na capa do jornal municipal e em anúncios de venda de imóveis. Não havia pregação que omitisse as virtudes da siriema. Era chamada insistentemente para dar entrevistas na rádio, bem como para solenidades oficiais, casamentos, batizados, sessões espíritas e reuniões do Rotary Club.

A maçonaria abriu precedente para acolher a siriema entre os irmãos. Por meio de uma moção da câmara de vereadores tornara-se cidadã de Pindamonhanduba e efeméride número um do município. Seria cantada e decantada em bares, no baixo meretrício, nas manicures, barbeiros e na academia de letras pindamonhadubense.

O busto de Dermevau, que seria colocado nos portões do estádio, deu lugar a uma estátua monumental da  siriema.

E aquele povo, que jamais tinha visto uma siriema, que venerava ardentemente o artilheiro  Dermevau Inocencio, agora cultuava uma ave pernalta e acidental,  criada pela verve irônica e perversa de um apelido.    

A partir de então,  Dermevau Inocencio, a glória do lugarejo e dono do chute mortal , nunca mais seria visto em Pindamonhanduba. Diz-se, para penúria do futebol, que jamais voltou a entrar em campo ou chutar uma bola.

Alguns afirmavam que andava perdido, dedicando-se apenas a cacarejar. Cacareja e comia ratos e cobras, em regiões agrestes.

Mas, a multidão irreverente, já não se lembrava mais de Dermevau Inocencio. Por uma dádiva do humilde  Mané Garrincha, só queria conhecer a tal da siriema.

E no estádio monumental de Pindamonhanduba, antes de toda e qualquer partida, num afã irreprimível, a massa afoita ainda gritava, delirantemente, por Siriema, o apelido inesquecível.

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG

 


Data: 09/08/2010