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Artigo - A bolsa empresário, o cachê falsário e o nova gratificação de professores faltosos: a desestruturação da carreira docente

Wagner Braga Batista

 

 

O Estado no Brasil pode ser historicamente caracterizado como um instrumento de acumulação privada. Pode ser visto como o principal vetor da transferência de recursos públicos para a esfera privada. Sob diversos meios, a hegemonia de diferentes parcelas da elite brasileira foi exercida a contendo para lograr este objetivo. Em diversos contextos, este foi o traço marcante do Estado brasileiro, financiar a iniciativa privada.

 

No entanto, este procedimento nunca foi transparente. Valeu-se de expedientes ideológicos para camuflar ou legitimar a utilização do aparelho de estado e a expropriação do patrimônio público. Recorreu a falsos objetivos nominais para realizar interesses restritos e inconfessos. A exemplo, a ambígua defesa da educação durante o processo constituinte na década de 1980.

 

No embate em defesa da educação pública, entendendo-a como um direito de todos e responsabilidade do Estado, a tergiversação se impôs.

 

O nome da educação foi habilmente empregado, por um grupo de políticos sem identidade ideológica, para promover objetivos muitas vezes não explicitados. Deste modo, o chamado Centrão, capitaneado por forças conservadoras, utilizava-se de apelos à educação para viabilizar a regulamentação e a expansão do ensino privado.

 

Esta façanha ganhou novo colorido quando se apelou à democratização do ensino para rebaixar padrões de qualidade da educação e favorecer questionáveis empreendimentos na rede privada, sob os auspícios do Estado.

 

No final da década de 1990, exacerbou-se essa tendência. Prosperou por intermédio do ensino contábil e contabilizado. O ensino aferido por meio da oferta de certificados, concedidos no caixa de instituições públicas e privadas, tornou-se proeminente. Suas metas: obter vantagens pecuniárias e indicadores numéricos. Em paralelo, observava-se a hipertrofia da educação pública e o vertiginoso crescimento do ensino pago. A privatização da esfera pública evidenciava-se na oferta indiscriminada de cursos de especialização pagos, nas taxações impostas para a obtenção de documentos, nas restrições ao acesso aos restaurantes universitários, no loteamento de cargos e de poder, na transformação do espaço físico de instituições públicas para abrigar atividades privadas, na valorização de fundações como alternativas à falta de autonomia institucional, na disseminação de núcleos que escapavam ao controle de unidades acadêmicas e de diretrizes institucionais, entre tantos outros expedientes. Emblemáticas deste período são as propostas de criação de lojas de conveniência e de shoppings em universidades públicas.

 

Propostas que se disseminaram por instituições de ensino privadas dando plena vazão à lógica mercantilista nelas instaladas.

 

Cresciam negócios privados em detrimento das atividades  fins das instituições públicas de ensino superior.

 

O resultado aí está. Em que pesem possíveis deficiências metodológicas, avaliações educacionais em curso apresentam quadro pouco auspicioso para a educação pública. A rede pública de ensino superior, que sempre se destacou pela qualidade do ensino, da pesquisa e da extensão, vem sendo sobrepujada por instituições de ensino privado. É oportuno que se diga, não há uma melhoria generalizada da educação, mas a crescente deterioração de padrões de ensino, acompanhada pela melhoria da performance de algumas instituições de ensino privado, em sua maioria confessionais.

 

Este histórico crítico ganha um novo capitulo com a minuta de projeto de lei apresentada pelo governo para reformular a carreira dos docentes do ensino superior federal. Este anteprojeto deveria ser fruto de negociação entre o governo e entidades de representação, devendo vigorar a partir deste ano.

 

O anuncio de que será encaminhado ao legislativo, ao invés de sinalizar a possibilidade de debate, constitui outra postergação. * Porém, o anteprojeto tem outras implicações. Suscita várias controvérsias e constitui uma cunha enfiada na carreira dos professores, especialmente no que tange ao regime de dedicação exclusiva.

 

A minuta possui muitas dimensões que merecem análise mais acurada. Porém, duas delas, que se interligam, despertaram nossa atenção.

 

A primeira, não explicitada devidamente, institui dois proventos, que reputarei de cachê falsário e gratificação de faltosos. Trata-se da retribuição por projetos  institucionais de pesquisa e de extensão. Atividades previstas e remuneradas pela gratificação de tempo integral e regime de dedicação exclusiva. A segunda, a desregulamentação do regime de dedicação exclusiva que legitimará a desfiguração desta conquista docente e o crescente processo de expropriação de instituições públicas por seus serventuários.

 

A nosso ver, há intentos que não podem ser obscurecidos. A guisa de regulamentar a pesquisa e disciplinar atividades de extensão, o anteprojeto faculta a realização de práticas, denominadas projetos institucionais, que tendem a escapar do controle das instituições federais de ensino.

 

É oportuno que se diga que todo projeto realizado em uma instituição pública de ensino superior é um projeto institucional. Ocorre que grande parte desses projetos foge ao controle e ao acompanhamento das instituições. Sequiosas de números, administrações estimulam iniciativas controversas e a proliferação de projetos com pouca ou nenhuma sintonia com seus planos estratégicos.

 

Ao flexibilizar estas atividades, o MEC exime-se de uma responsabilidade capital, preservar o regime de tempo integral e dedicação exclusiva, sabidamente burlado.  

 

A título de instituir uma nova estrutura de carreira, o governo desfigura, mais uma vez, a educação pública. Propõe-se a legalizar uma situação de fato e oferece álibis para que professores contratados em regime de dedicação exclusiva possam exercer outras atividades e receber novos pro-labores. Na verdade, não constrói uma alternativa consistente para impedir desvios de conduta, observados em instituições publicas de ensino, apenas aposta num disciplinamento precário que serve para mascarar o que é feito às escancaras. Alegando resguardar um regime de trabalho contribui para dissolução de preceitos indispensáveis à educação pública e anula sutilmente os princípios da dedicação exclusiva.

 

Quando sugere que 30 horas podem ser destinadas a cachês e 120 horas anuais à retribuição de projetos institucionais parece retomar a estória da meia gravidez. O regime de tempo integral e dedicação exclusiva  prevê a realização de projetos de pesquisa e extensão. Por que a dupla remuneração? Por que projetos institucionais? Todo projeto de pesquisa não deve passar pelas unidades acadêmicas e órgãos colegiados? Então, por que a reiteração ? Implicitamente, há nesta formulação o reconhecimento de projetos de que não são institucionais encontraram abrigo em instituições públicas e agora, para que sejam disciplinados, tem que ser recompensados. Premiem-se, então, os faltosos.

 

Esta dualidade de condutas, implica em que se realize um jogo, à brinca, para a platéia e outro jogo pra valer, à vera,  para os reais interessados em seus resultados. Aqueles que se beneficiam da burla ao regime de tempo integral e dedicação exclusiva.

 

Deste modo, a tática do Centrâo é reeditada. Utiliza-se o mote da reestruturação para promover a desfiguração da carreira docente. Com este intuito, mobiliza-se energias e expectativas que se fazem presentes em instituições públicas de forma latente. Até então, constrangidas pela evidencia da burla ao regime se trabalho, agora são estimuladas. Professores faltosos sentem-se à vontade para proclamar seus interesses restritos e possíveis virtualidades de suas pesquisas, atividades de extensão, atos empreendedores e inovadores que encontram no regime de trabalho, supostamente retrogrado, uma barreira. Sem muitas reservas, vêm à tona para proclamar a importância de suas empresas e de seus negócios com amparo legal. Munidos de um dispositivo que legitima o que, até agora, é praticado de forma ilícita.

 

Este estratagema ganha a simpatia e a adesão de professores que se desvencilham de veleidades criticas. Supõem que serão aquinhoados com esta partilha. Que o botim da universidade pública  alcançará a todos. Repete-se aqui, aquela velha situação, escarnecida por Stanislaw Ponte Preta: Ou todos nos locupletamos ou a moral não será restaurada.

 

Contudo, estão equivocados. O salve-se quem puder, será, como sempre foi, o álibi de apenas alguns, não de todos.

 

Para os demais, estará reservado o achatamento salarial e a corrosão das condições de trabalho. Este será o legado da grande maioria de professores, os sem empresas, sem consultorias, sem aulas em instituições privadas e sem biscates. Ou seja, os professores que exercem condignamente suas atividades docentes.

 

A retribuição por projetos institucionais de pesquisa e extensão será efetuada por sistema oficial de pagamentos da união, os novos proventos não serão pagos diretamente pela folha salarial.

 

Possivelmente se instaure uma nova parceria publico privada, evolvendo comerciantes do ensino e empresários socialmente responsáveis. Os beneficiados com a gratificação dos faltosos, continuarão sendo pagos pelos cofres públicos por meio de uma capilaridade que alimenta o ensino privado e entrega as instituições públicas a sua própria sorte. Seus proventos serão debitados do esvaziamento consentido das instituições federais de ensino superior.

 

A gratificação dos professores faltosos sairá também dos bolsos de pais de alunos, que continuarão pagando por projetos institucionais de pesquisa e de extensão, duplamente remunerados, para que seus filhos fiquem sem professores em salas de aula.

 

Como afirmamos anteriormente, os novos proventos serão o álibi utilizado para que alguns professores possam fazer o que já vem fazendo. Sob o pomposo nome de projetos institucionais de pesquisa e extensão, realizam consultorias em empresas e afiliadas, bem como um cartel de atividades, muitas vezes divulgadas no âmbito da própria instituição em que trabalham. Continuarão dando curso aos seus negócios privados. Continuarão a alegar que não tem tempo para dar aulas porque tem outras atividades para exercer.

 

Pior. Em prejuízo da docência e dos verdadeiros professores, os faltosos serão considerados proficientes empreendedores de seus próprios negócios. Merecedores, portanto, da gratificação dos faltosos.

 

Para não dar margem a dúvidas ou argüições, não são todos os professores que se incluem nesta situação. Até mesmo porquê não podemos dizer que professores faltosos ou relapsos sejam professores.

 

A gratificação dos faltosos, não é algo novo. Surge como decorrência da oficiosa Bolsa Empresário.

 

Os recursos que velada ou abertamente são destinados ao financiamento do empreendedorismo privado, ou seja, investimentos privados realizados com salários, recursos materiais e instalações de instituições públicas. Portanto, não deve causar estranheza que a gratificação dos faltosos se confunda com um cachê artístico. Posto que alguns professores, talvez  façam jus a esta condição de autênticos artistas, tal a perícia em dissimular e burlar o regime de dedicação exclusiva, ao qual não estão vinculados obrigatoriamente. Não são obrigados a se manter no regime de dedicação exclusiva, podem migrar para outro regime de trabalho e exercer outras atividades. Porém, tiram proveito do regime de dedicação exclusiva o quanto podem.

 

O professor não é obrigado a exercer a carreira de magistério sob o regime de dedicação exclusiva. Pode abrir mão deste regime de trabalho por meio de exposição de motivos que justifique sua dedicação a outras atividades privadas, optando por regimes de 40 h ou de 20h de trabalho.

 

Diga-se, de antemão, que a defesa do regime de dedicação exclusiva para todos os professores das instituições federais foi uma reivindicação do movimento sindical docente em seus primórdios. O que significa? Assegura que todos professores tenham condição de se dedicar integralmente ao ensino, à pesquisa e à extensão, atividades indissociáveis na educação pública de qualidade. Fazer das instituições de ensino públicas um ambiente propicio à pesquisa, a reflexão, á produção acadêmica e ao ensino publico, gratuito e de qualidade. Assegura o direito de todo professor exercer o magistério sem constrangimentos. Com dignidade e autonomia realize sua atividade educacional sem pressões mercantilistas ou de outra natureza.

 

Agora nos defrontamos com a tentativa de regularização de um desvio de conduta, que afetará um dos pilares básicos da atividade docente. E aí? O que fazer?

 

É bom que se advirta que não é competência de professores isoladamente ou de suas entidades de representação coibir estas atitudes lesivas. Não somos Judas, nem policiais. Não temos que nos sujeitar a constrangimentos provocados pelos que praticam ou acobertam estas ações. Tampouco, procurar indícios do que se esconde por trás de cortinas de fumaça para comprovar o que é sabido. Detectar e corrigir estas distorções é atribuição de administradores, que pela natureza e responsabilidades de seus cargos devem assegurar o respeito, a probidade e a transparência inerentes às funções públicas.

 

Esperamos que neste debate, as posturas de todos setores comprometidos com a universidade e a educação pública se mostrem de forma inequívoca e cristalina. Revelem seus reais pendores como dirigentes, professores, funcionários técnico-administrativos e estudantes, posto que esta é uma questão ampla e abrangente, diz respeito ao papel da universidade pública e á destinação da educação superior em nosso país.

 

Esta situação critica, com sua subseqüente regulamentação, ameaça a educação pública. Tem como conseqüência não só a legitimação do desrespeito ao contrato de trabalho, mas a crescente degradação de instituições de ensino. Provoca o esvaziamento físico e critico da educação pública, convertida em linha auxiliar de projetos estritamente privados e patamar para a realização de interesses restritos. Transformará o trabalho docente numa atividade subsidiária, como aliás, lamentavelmente, vem se tornando em muitas instituições de ensino.

 

* Projeto regulariza atividade extra de professor federal: Minuta de texto elaborado pelo governo define as atividades remuneradas permitidas a docentes de instituições federais, Estado de São Paulo, 31 de julho de 2010 URL:  http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20100731/not_imp588536,0.php


Data: 03/08/2010