topo_cabecalho
Artigo - Os velhinhos decrépitos e o messiânico esforço pela adesão de Muricy Ramalho às fileiras do proletariado

Wagner Braga Batista

 

 

Como faziam todas as sextas, na calada da noite, lá estavam os velhinhos, disfarçados de donas de casa, conspirando contra tudo e todos, por trás da pilastra do Edificio Palomo. 

 

Estes velhinhos decrépitos, irredutíveis defensores do povo de Campina Grande e, especialmente,  dos moradores de Bodocongó, mais uma vez se debatiam contra inimigos internos, que provocavam a cisão das forças progressistas e novas defecções no partido do operariado ausente.

 

Naquele dia, ali estariam os treze remanescentes de gloriosas jornadas. Contudo, estavam apenas nove velhinhos. O décimo ficara internado e o décimo primeiro não conseguira se evadir do Asilo São Vicente de Paula. Tragicamente, o décimo terceiro com cento e noventa e dois anos não resistira a uma longa noite de sexo selvagem e falecera de véspera. Porém, diga-se, os que restavam, mantinham-se resolutos e firmes, apesar dos tremores e convulsões causados pela febre e pelo mal de Parkinson que lhes acometia.

 

Eram os últimos paladinos do internacionalismo proletário e verdadeiros baluartes da luta em defesa do Açude de Bodocongó.

 

Neste dia, após os rituais de exaltação aos mártires do socialismo e a aprovação da última ata, afloraram  discordâncias e desavenças.  Eram apenas nove velhinhos, porém estavam postas trinta e duas propostas diferentes para discussão sobre a mesa.

 

As diatribes se iniciariam com a definição da pauta. Além da unanimidade sobre o tema recorrente, a discussão sobre o fim do mundo, havia divergências sobre o rumo a seguir.  Uns davam relevo à intervenção no movimento de massas dos penitentes, outros, renitentes do putsch, propunham a tomada do Palácio da Alvorada, numa avassaladora escalada das forças revolucionárias de fim de semana. 

 

Inúmeras questões de ordem e destaques de pauta, truncavam o inicio dos debates atrás das pilastras do Edificio Palomo. Os mais prudentes pediam calma para que as dentaduras e próteses não fossem danificadas. Diversos assuntos avultavam, tal a ânsia revolucionária dos dez velhinhos decrépitos.

 

Uns queriam discutir o tragicômico papel de uma nova dupla de comediantes Índio Babalu e Zezinho Babaquara, que se candidatara à presidência da nação tupinambá, outros se inclinavam no sentido de aprofundar o debate sobre um santo de pau oco, que um ladrão equivocado, deixara num banheiro público ao lado. Inicialmente, pensaram que fosse um atentado terrorista ou um ardil das forças reacionárias. Depois, mais atentos, perceberam que era um simples despacho de estudantes residentes na pensão de Tia Isaura.

 

Contudo, a ala dos maníacos persecutórios contumazes não se convencera. Acesa e coesa não abria mão de sua paranóia.  Suspeitava que um hipopótamo de vidro, um reles agente provocador da CIA, estivesse infiltrado naquele clandestinissimo grupo de conspiradores a serviço de Moscou. Acerba, pedia o justiçamento do calhorda. Por fim, dado o avançado da hora, como ainda não haviam feito a conspiração do dia, chegaram a um difícil consenso:  agrupariam serenamente as cadeiras de roda, juntariam as bengalas e fariam a tradicional análise de conjuntura.  

 

Fecharam num ponto. Todos concordaram que o elemento central da análise de conjuntura era Muricy Ramalho, aquele que se celebrizara como o homem de palavra.

 

Contrariando o protagonismo das massas, Muricy exercia um  papel predominante na dinâmica da luta de classes, na urgente tomada do poder e impunha ingentes tarefas de curto prazo. Vários argumentos se sucederam afirmando que os desdobramentos destas ações imediatas poderiam resultar no fim do imperalismo ianque, na desarticulação da CIA, no desmonte da CBF, linha auxiliar do capitalismo financeiro,  e no fim da podridão que nos apodrece.

 

Um dos velhinhos decrépitos, mais inflamados, tomado de súbita emoção, desligou involuntariamente o marca passo. Outro, apesar de enfermo, subiu na cadeira de roda, amparado pelo seu enfermeiro, e fez inflamado discurso.

 

Companheiros velhinhos decrépitos. A renúncia de Muricy pode ser vista como um ato de insubordinação do proletariado. Representa a recusa de um trabalhador de se converter  num vassalo do imperialismo e num títere da CBF.  Esta postura deve ser saudada como uma nova guinada histórica, uma ruptura radical operada na dinâmica cumulativa do capital e na reprodução da sociedade de classes. A desfeita a Vil Teixeira representa uma atitude de grande desprendimento, de denúncia do futebol para consumo de elites e do  capitalismo selvagem. Constitui um primeiro avanço na aquisição de consciência crítica e da prática revolucionária de um técnico de futebol. Portanto, deve ser  valorizado e  resgatado.

 

Neste momento , um dos velhinhos teve problemas de pressão e teve que ser urgentemente internado.

 

Só Muricy Ramalho poderá redimir os partidos políticos brasileiros de suas mazelas, do mensalão do PT, dos Jungmans do PPS, do narciso-udenismo raivoso de Heloisa Helena, do fisiologismo do PTB, do doutrinarismo do PCB, da volatilidade do PDT, do malufismo do PP, dos fétidos pinicos de Sarney do PMDB, dos códigos florestais do PC do B, do elitismo do PSB, da voracidade instrumental do PSTU, dos sadoeconomistas e índios frajolas da socialdemocracia, do DEM nem preciso dizer e de todos deslizes que nos assolam.

 

Subia o tom.

 

Este novo herói popular, Muricy, a encarnação  da palavra do homem  num mar de traíras,  deve ser incorporado às fileiras do proletariado. Não podemos hesitar, urge que utilizemos nossas últimas energias e ....  

 

A falta de ar roubava-lhe a voz,porém, arfando, concluiu:

 

 E desenvolvamos esforço hercúleo nesta perspectiva salvacionista, da libertação de Muricy, da  defesa de Bodocongó e da luta pelo socialismo.

 

 As ambulâncias do SAMU já não tinham mais onde estacionar às portas do Palomo. Altas horas da noite, já não havia mais balões de oxigênio, porém  a euforia dos velhinhos comunistas não tinha hora para acabar.

 

Muricy poderia ser um último alento, um derradeiro respiro, a revitalização das esperanças que se desvaneciam. Muricy poderia tirar o comunismo das sombras, reergue-lo num novo patamar e lançá-lo novamente no mundo da luz e, quiçá, em algum altar. Tossiram à exaustão num ato de júbilo e contentamento. Ergueram as bengalas e fizeram a célebre saudação internacionalista.

 

Resolveram inicialmente fazer uma moção proclamando a inabalável fé no socialismo, no papa João XXIII e nos homens sérios. Segunda resolução: incluir no rol dos homens sérios e incondicionais adeptos do nacionalismo, o nome de Muricy Ramalho. Terceira resolução: como bons positivistas e retro-comunistas, deveriam explicitar os motivos da inclusão. Deste modo, os comunistas de bengala de futuras gerações, não terão dúvidas de nossas certezas e convicções.  Nem imaginarão, em hipótese alguma, que houve falta de caráter, tibieza dos ossos, fraqueza ideológica ou qualquer indicio de vacilação. Discriminaram, então, a seguir : Muricy Ramalho foi incluído na ata e no rol dos homens justos e sérios porque certo dia, em sua infância, foi solidário com um menino boiola, não discriminava  integrantes do time do Flamengo e jamais matou passarinhos. Consta em seu currículo vitae que jogava com bolhas em carne viva nos pés e suava a camisa. Suava, insipientemente , posto que ainda não era um adepto da causa do socialismo. Se não teve a oportunidade de envergar as chuteiras da pátria,  em 1978,  atuou no time de um santo guerreiro, convertido ao cristianismo e, pode-se presumir, se estivesse no século XIX,  converter-se-ia ao  socialismo. Paulo, este santo, na falta de palavras, de uma compreensão correta da luta de classes e do reino das liberdades,  dizia: é melhor perder um olho na terra do que  entrar cego no reino dos céus. Metaforicamente, sem nenhuma dúvida, o santo fazia alusão ao ingresso tardio no reino do socialismo .

 

Com palpitações, sentencia:

 

Temos que contatar, libertar  e recrutar Muricy Ramalho para as lides do socialismo. 

 

Após as ovações e tremores de praxe, chegaram ao entendimento de que destacariam novamente Astrogildo Pereira, para ter com Muricy Ramalho, assim como fizera com Prestes, em 1927, na Bolivia.

 

Astrogildo Pereira seria novamente o emissário das boas vindas de Muricy Ramalho aos quadros do Partido dos Velhinhos Decrépitos e Comunistas de Bengala de Campina Grande.

 

Os velhinhos comunistas estavam convictos de que deveriam buscar sua reserva moral. Precisavam de um homem de palavra que estivesse à altura dos seus ideais de transformação social dos arredores de Bodocongó e, quiçá, futuramente de toda Campina Grande.

 

Relembravam-se, com júbilo, que em 1935, a revolução começara às margens do Bodocongó. Estes mesmos velhinhos anteciparam-se aos fatos históricos e atendendo aos clamores do povo, aprisionaram três calangos, vinte preás, um fiscal do IBAMA, um bêbado desocupado e declararam ao mundo que estava instalada a República Soviética de Bodocongó.

 

A partir daí, foram sucessivos desatinos e perversos julgamentos.

 

Recordavam-se de suas penúrias,  agruras e julgamentos nada memoráveis. Eram julgados nos jornais e missais de igreja. Nas aulas de higiene e nos anúncios de dentifrícios. Nas reuniões de condomínios e nos jogos de bicho. Nos obituários e calendários apostos nas portas de institutos e de edifícios. Por decreto de Getulio, eram obrigados a contar a data de julgamento dos velhinhos octogenários.

 

Conspiradores natos, desde 1922, os injustiçados velhinhos vinham sendo julgados anualmente. Um dos velhinhos mais radicais fora julgado cento e dez vezes no mesmo dia. Há cada quinze minutos era transferido de câmaras escuras, cárceres tenebrosos e salas de tortura para os tribunais. Ia e vinha sem tempo sequer de ouvir as inúmeras sentenças e condenações que recebia. Mesmo assim sentia-se aliviado quando saía das masmorras da ditadura para horripilantes Auditorias Militares.

 

Os velhinhos decrépitos já estavam viciados em julgamentos. Uns tomavam julgamento em doses homeopáticas, outros em pílulas. Havia aqueles que, convalescendo, tinham que receber supositórios ou aplicar doses cavalares de julgamentos diretamente nas veias. 

 

Havia, também, velhinhos que já não eram julgados. Eram mantidos em cárceres clandestinos e privados. Diziam que, como autênticos materialistas, teriam que se desmaterializados, senão voltariam à luta. Seus familiares, ainda hoje, choram velhinhos decrépitos desaparecidos.  Levados por homens carrancudos, com mãos de torniquetes, caninos à mostra, cabelos nas orelhas, sangue escorrendo dos olhos e fogo saindo das ventas, mesmo algemados, os velhinhos decrépitos levantavam os punhos, cantavam a internacional e, quando não mais conseguiam erguer a voz, tossiam ardentemente.  

 

Eram sucessivamente julgados, execrados, lançados à arena dos leões ou, por opção, simplesmente fuzilados.

 

Foram várias décadas de injúrias e toda sorte de sofrimentos. Até que surgiu uma jurisprudência, constituída a partir do julgamento de um missionário francês e militante do PC português, Auguste Oreille y Oreille Olivier, um combativo militante que morreu há dois mil e duzentos anos após comer um pastel chinês.

 

O libelo acusatório o denunciava por pegar em armas contra a redentora revolução de 1964. Seu advogado de defesa, ironicamente pediu que os jurados olhassem para aquele senhor com mais de um século e meio de existência e retrucou sarcasticamente: A quem, meu preclaro interloculor e insigne tribuno, se refere? Aquele velhinho decrépito, que mal se agüenta pernas,  ou a sua bengala.

 

Desacreditado pela inconsistência de sua denúncia, o promotor ruiu em pranto. Debruçado aos pés de torturadores e inquisidores chorava copiosamente. Não conseguira lograr seu intento, via-se na obrigação de pedir perdão a todos velhinhos decrépitos e transferir a acusação para suas bengalas.

 

Estavam exaustos, famintos, com o corpo dilacerado, porém, no dia seguinte, já estavam de pé, os incansáveis velhinhos, conspirando na calada da noite, por trás da pilastra do Edificio Palomo.

 

Desde este dia, resolveram trocar a foice e do martelo, dois signos fora de moda, por uma simbologia mais sugestiva e avançada. Adotariam o apelo à decrepitude em homenagem à  idade provecta e aquele inequívoco sustentáculo do comunismo injustiçado, a prolatada bengala.

 

Estes foram e serão os pobres velhinhos decrépitos, guerreiros de sempre e impetuosos libertadores do açude de Bodocongó. 

 

Agora tinham uma inadiável missão: resgatar Muricy Ramalho, o homem de palavra, das garras de Vil Teixeira

 

Tramavam religiosamente todas as horas e todas noite. Minuciosamente elaboravam uma estratégia para libertar Muricy. Infiltrar-se- iam no time Fluminense, apresentando-se como ponta esquerda, na pele de Benedito Custódio Ferreira, um velhinho de Nova Lima, conhecido pelo codinome de Escurinho.

 

A um só tempo, desenvolveriam duas ações revolucionárias, restaurariam esta gloriosa posição, abolida do futebol burocrático, e salvariam Muricy Ramalho, das prisões da CBF, da sanha de Vil Teixeira e das hordas de patrocinadores.

 

Aproveitariam o instante da preleção, quando todos os jogadores estivessem com i-pods nos ouvidos, ensaiando passos de funk, olhando para seu próprios umbigos, passando gel nos cabelos, comprando brincos de pérolas e chuteiras de marfim, aproximar-se-iam sorrateiramente e libertariam  Muricy.

 

Neste difícil missão, valer-se-iam do apoio logístico dos cururus do bairro da Prata, tendo à retaguarda piabas de corredeiras e diligentes caçotes do Boqueirão.  Atravessariam rapidamente o campo das Laranjeiras com suas bengalas e cadeiras de roda. Chegando à rua Álvaro Chaves seguiriam em passeata com os aguerridos jegues do curimataú até as matas do Corcovado. Enveredariam pela selva fechada  rumo aos pés da Mantiqueira, onde as  Cordilheiras de Caparaó certamente lhes esperavam. Subiriam em triunfo , posto que teriam salvo Muricy Ramalho.

 

Do alto das cordilheiras, uilizariam a rádio rebelde de Manhuaçu Mirim para que Murici Ramalho, liberto, pudesse fazer um pronunciamento ao indeciso povo mineiro. Lá, protegidos pela selva, estariam a salvo do marketing esportivo, de lobbistas de empreiteiras, das clãs da CBF e de agiotas de jogadores. Poderiam assegurar ao povo que Muricy manteve sua palavra.

 

Resistiriam bravamente, até que a chegada das brigadas cubanas, dos internacionalistas de tantas jornadas que se somariam nesta luta para que Muricy Ramalho mantivesse sua palavra.

 

Se tudo corresse bem, poderiam pactuar uma saída honrosa, entregar-se-iam, em armas e bengalas, desde que fosse mantida a palavra de Muricy, respeitassem os direitos de camponeses de Puxinanã e de São José da Mata, não capturassem as piabas de corredeiras, bem como preservassem as margens do açude e as límpidas águas do Bodocongó. Porém, um insatisfeito velhinho não se conteve. Não poderiam ignorar uma reivindicação histórica das forças democráticas. Propôs um acréscimo a lista de reivindicações. Fez um adendo ao honroso acordo, prontamente aprovado. Postulava que, num gesto de grandeza, em defesa da educação pública, professores faltosos fossem compelidos a dar aulas.

 

Por fim, lançariam um manifesto  das janelas do Edificio Rique, dirigido a todo o povo brasileiro, aos companheiros de Campina Grande, aos torcedores do Fluminense e aos correligionários de Bodocongó. Conclamariam a todos a seguir o edificante exemplo de Muricy Ramalho, o homem de palavra.

 

Após este grande esforço regenerativo da esquerda brasileira, os velhinhos decrépitos retirar-se-iam deste tortuoso cenário. Recolher-se-iam com suas famílias no aconchego de seus modestos chinelos. Convictos de que cumpriram com seu dever de revolucionários, poderiam, então, visitar os companheiros acamados, em paz.

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG


Data: 26/07/2010