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Artigo - O hipopótamo de vidro, Dom Pedro II e os estertores da Feira da Prata

Wagner Braga Batista

 

 

Disseram que havia vindo no vento. Trazido do Quenia, mas ninguém acreditou. Era um hipopótamo colossal, transparente. Com suas vísceras à mostra, revelava a fisiologia do mundo e tudo aquilo que suas entranhas abrigavam.

 

Veio descendo pelo rio Caracóis, mergulhou num bueiro e saiu no Açude de Bodocongó. Isto ocorrera há muito tempo, provavelmente em 1778, às vésperas da revolução francesa. Outros alegavam que fora mais tarde, em 1882, durante a visita de um homem exótico, com paletó comprido, barbas brancas enormes e muito educado, que parecia louco, pois se dizia imperador do Brasil. Chegou no Chapadão da Borborema e imediatamente quis conhecer aquela preciosidade. Seu espanto foi semelhante ao de Charles Secondat de Montesquieu frente ao homem nu, habitante do novo mundo. Afirmara então, a “dificuldade de se implantar e consolidar instituições livres em regiões de climas quentes e culturas lascivas, que tornam o gentil povo de Deus, naturalmente pio e bondoso, em rafaméia indolente e vil.” Acrescentaria a seguir em suas cartas enviadas a Jean Paul Satre, dois séculos depois, “que seria mais fácil transplantar a flora e cuidar da animália no velho mundo, do que disseminar a nobre cultura em terras hostis e entregá-la gentilmente ao gentio incivilizado”. Naquele tempo, um brilhante cirurgião já havia transplantado dois dentes de um cachorro num elefante, três corações de lobisomem num cordeiro, um olho de sapo num morcego e corações de agni dei em milhões de selvagens. Exitoso em algumas dessas ações macabras ou bruxarias, foi agraciado com o premio Nobel e perdão da Igreja em troca das patentes entregues ao Vaticano. Tudo se transplantava, partes de organismos vivos, consciências, virtudes, principios e pecados, posto que já havia se difundido as relações de troca, os equivalentes financeiros e a economia de mercado. Contudo, apesar de tantas conquistas, ainda não se conseguira transplantar a redentora civilização cristã entre os índios, pebas, jegues do curimatau e cururus degenerados. Posto que, “este gentio renitentes e nada industrioso, valia-se da indolência e da preguiça, acusando à prodiga natureza pelas suas fraquezas de homem e de bicho”.

 

Mal sabiam, que no final do século XX, um teórico da dependência econômico, reinou sobre o pensamento único. Entre suas obras, na galeria dos heróis do agentes do cinismo e do egocentrismo consta que civilizou os aborígenes do Brasil, domesticou a natureza ímpia entregando-a aos próceres do capitalismo transnacionalismo, permitiu que as Corporações Multinacionais do Santo Ofício arrancassem da terra a bílis negra que amarga a natureza e impregna nossos pulmões, interrompessem o silencio dos nativos com a oferta de celulares e , domassem as correntezas e fluxos financeiros, tomassem conta de empresas de pagãos, reduzisse o salário de xamãs, democratizou o ensino pago e impediu a contração de hereges que ensinavam curumins a serem índios revoltados. Mal sabiam que esta terra inóspita seria transplantada no primeiro mundo. Mal sabiam que teórico da dependência, do narcisismo envergonhado globalizou de dentro para fora e de fora para dentro. Erradicou o bem e globalizou o mal. Globalizou regiões inteiras, multiplicando pobres e seduzindo os ricos. Transplantando pobres e miseráveis de inóspitas terras do interior para desumanas condições de vida da capital.

 

Mas lá estava, a comprovação empírica e fatual, da transposição da cultura, da ordem, do progresso e positivismo natal. No Acude de Bodocongó, um habitante de outro mundo, comia e fazia bosta, tal qual um ser nativo e universal.

 

Nos estertores do século XIX, o século do progresso, a razão e a fé caminhavam juntas sobre as águas de Bodocongó. O hipopótamo de vidro tornava-se a primeira evidencia de que o transplante da vida e da civilização ocidental para todo mundo inscrevia-se no rol de possibilidades do positivismo antropológico e capitalismo sociopata.

 

O hipopótamo de vidro, aos olhos de D Pedro II, um sagaz imperador japonês, a despeito dos relevantes serviços prestados a Deus e ao capital inglês, poderia ser utilizado como garota propaganda do império, do tardio capitalismo germânico, do emergente gangsterismo norte americano, dos bons vinhos franceses, da porcelana chinesa, do uísque escocês, da máfia italiana e da carne de corno argentino.  E assim D Pedro II, tornava-se precursor do marketing esportivo, abriria uma loja maçônica em Wall Street, uma agencia de propaganda num muquiço da Lapa e teria um caso não registrado com Lima Barreto, um negro inconfidente, que participou ativamente da primeira da revolução socialista no Brasil, em 1903.

 

D Pedro II, mais do que ninguém, sabia o hipopótamo de vidro era versátil, era um exímio esportista que jogava bridge e pólo, praticava o nado de costas e a lipoaspiração, falava inglês, frances e espanhol. Segundo D Pedro II, lera autores clássicos, como um presumido humanista, sensibilizava-se com as dores do mundo, tinha angustias existenciais e subsistia graças ao goró que tomava na Feira da Prata aos domingos.

 

Em nota paga, publicada na imprensa local, de Campina Grande, em 14 de julho de 1884, declarava o imperador:

 

Nomeio o hipopótamo de vidro, este cavalo dos rios, um ser humano como outro qualquer.Gozando dos direitos que a Constituição confere a todo súdito do império. Poderá cursar escolas laicas e religiosas onde melhor lhe aprouver. Fazer exames no SUS e ter acesso a um jazido no cemitério. Terá direito a um soldo de 12 mil reis, que é pago regularmente aos oficiais de patente e adeptos da Coroa. Poderá dar rolés pelas ruas de Campina Grande, utilizando óculos escuros, meias três quartos e chapéu de tirolês. Posto que este ser dos rios, que no Rio dos Caracóis quis ter, é dotado de virtudes e aptidões que lhe capacitariam para obter um titulo de nobreza, que não lhe será outorgado porque assim não quis.

 

De posse deste apanhado, toda nobreza e todos prelados se sentiram honrados em conhecer o hipopótamo de vidro agraciado com uma nota na imprensa e um titulo recusado. Sentiram-se tão gratificados, que um beneditino quis convertê-lo ao catolicismo, antes que hereges ou calvinistas se “apressassem em macular este espírito dotado de altruísmo e grandeza”.

 

Senhor de suas razões e costumes, declinou do convite. Não era um homem de fé, mas também não era um biltre. Seus valores e convicções o tornaram um agnóstico, avesso ao misticismo e ao materialismo vulgar. Queria apenas comer moedas de ouro, banhar-se nos rios e confortavelmente poder defecar.

 

Por fim, quando D Pedro II, com todo seu imenso séquito de puxadores e bajuladores, quando deixou Campina Grande, remoia em sua lembrança a eterna incerteza de um dia voltar. Lembrar-se-ia em Lisboa, daquele ser robusto, que lhe fizera sorrir e pensar no regime rebuplicano, na democracia e numa nova sociedade que iria se configurar. Sua admiração era tanta, que pediu para ser retratado juntamente com  hipopótamo de vidro, portando o livro de um abolicionista famoso. Causou-lhe estranheza, que este ser nomeado humano tivesse esta propensão.

Indagou-lhe respeitosamente D Pedro II:

 

 Afinal, negros de tribos africanas caçavam helicópteros e hipopótamos, de onde então surgira esta propensão libertária ? Por que este hipopótamo manifestava-se contra a instituição civilizadora da escravatura ?

 

Solícito, o hipopótamo de vidro, externou suas razões:

 

Além das vicissitudes individuais e temporais, como oprimido que sou, associo-me a todos os oprimidos na luta contra a opressão.

 

Os tempos passaram. Talvez o hipopótamo em sua solidão intelectual e filosofal não despertasse mais tanta atenção, no século seguinte. Eram tantos automóveis, letreiros, eletrodomésticos e informáticopatéticos, que ninguém prestava atenção a um hipopótamo transitando pelas ruas de Campina Grande.

 

Depois, apenas um século depois, milhões de forasteiros, sem paradeiro, chegaram no logradouro. Vinham de países exóticos chamados banidos, exilados presos e desterrados. Chegavam neste rincão meio atordoados. Pouco conheciam da língua, dos costumes e do fungado. Ao invés de beijo, davam um cheiro. Eram de espécies estranhas que se cruzavam, como a marcha das utopias, pareciam sair das entranhas do açude em que aportaram. Chegavam homens com pelos nas ventas, como se nunca tivessem se barbeado, usando calças justas, falando trocado. Falavam palavras chiadas, equivocadas e pareciam até entender o que eles próprios diziam. Mulheres com saias curtas, asas enormes, beiços arregaçados, seios desvendados, cabelos em todo canto, até embaixo dos braços. Não tinham medo de homem e agiam de modo atravessado. Esse povo migrado chegava aos montes, trazia objetos esquisitos, que falavam sozinhos o que tinham gravado. Trouxeram outro aparelho que aprisionava imagens numa tela e prendia também o olhar. Montavam umas coisas chamadas estantes,  com milhões de livros como pombos empoleirados, que ocupavam a poeira para se cobrir de bolor.  Tinham umas idéias malucas sobre a abolição dos pecados, a redenção dos homens, o fim do mundo e um sistema de vida em que o escravo era igual ao senhor. Benza-me Deus.

 

Neste tempo, o hipopótamo freqüentou o Cavé, participou de calorosos debates no Teatro  Municipal, assistiu excelentes peças nos festivais de inverno, vibrou com os violeiros e cantadores. Exultou com a democratização do país.

 

Mas os tempos foram mudando, os jornais informavam que as idéias caducavam e os hipopótamos também.

Hipopótamos são muito sentimentais e suscetíveis à tristeza. Tanto eram, que o hipopótamo de vidro  também foi.

 

Caiu em depressão e certa feita um caminhão de entulho recolheu-o na rua. Vendido para um antiquário, foi repassado para uma senhora, saudosa de D Pedro II, que casualmente lhe reconheceu.

 

Conservado numa cristaleira, suas penas aos poucos foram caindo. Só restavam uma cor verde retinta e umas poucas pintas amareladas, que escureciam sua pele. Além dos dentes, estava nu e cada vez mais transparente.

 

Despertou, então, a atenção de pesquisadores.

 

De perto, à luz dos mais atualizados conhecimentos científicos, por fim, pode-se constatar que o hipopótamo transparente, não era oco. Tinha sido pintado para um happening, em 1913, e, desde então, segundo os pesquisadores, refugiara-se no leito do rio. Saindo, apenas, ocasionalmente para visitar alguns remanescentes do Circulo do Humanismo Ameaçado.

 

Os pesquisadores também asseveravam que o hipopótamo, na verdade, era um ser hialino, cristalino, translucido e transparente, em extinção. Estes seres de vidro são muito frágeis, afirmavam. Este, precisamente, talvez fosse o último sobrevivente de uma espécie extinta, chamada pureza.

 

E assim graças a pesquisadores da UFPB, o hipopótamo de vidro ganhou novamente as ruas.

 

Ainda assim, o processo de readaptação foi muito difícil.

 

O hipopótamo, fora d’água, agora só se alimentava de notas de cem mil e moedas de alto valor. Apesar de só ter quatro dentes estraçalhava moedas de toda sorte. Dentro dos rios devorava descartáveis,coisas supérfluas, automóveis de luxo, mansões desocupadas, jóias usadas lançadas no lixo, banalidades, vícios e hipocrisias, que embaixo d’água não se deixavam ver. Em terra, pelas ruas da Prata, comia riquezas e coisas imprestáveis colocadas dentro das casas. Por causa do hipopótamo de vidro, ergueram altos muros. Todos queriam esconder suas futilidades e se proteger da voracidade do hipopótamo vidro, que tinha muita coisa para comer.

 

O hipopótamo de vidro, também, passou a freqüentar tertúlias. Recitava Drummond, Neruda, Brecht, Gullar, Chico Buarque e outros meninos que conhecera. Falava de antigos poetas da UFPB, Marcos Agra, Edilberto, Ze Antonio, e também renovava citando os novos bardos da UFCG, Chicão, Graça e outros dos quais não se recordava.

 

Certo dia, porém causou constrangimentos. Não porque seu peso, seu porte ou envergadura fossem julgados pouco poéticos, mas por dizer algumas verdades que mesmo poetas não gostavam de ouvir.

 

Viu-se então marginalizado, como um poeta maldito, mergulhou no haxixe e no absinto, para escrever um livro famoso, plagiado anteriormente por outro poeta francês : “Les fleurs du mal”

 

Desapontado com a literatura, volta novamente às lides da Prata. Lá descobre que tinha uma inequívoca habilidade para ler o futuro, era um criptomante nato e podia fazer adivinhações. Associou-se, então, com tia Laura, uma senhora esbelta e faceira que no final dos anos 70, tinha um pensionato na Prata, nos finais de semana era um terreiro de candomblé e nos dias úteis um aparelho do PC do B.

 

Adivinhara o fim do regime militar, o golpe dos democratas arrependidos e regenerados, o advento dos coloridos recauchutados, o liberalismo restaurado, o marketing do capitalismo civilizado, o populismo revisitado e, por fim, vaciticinara que no dia 12 de abril de 2020, o Brasil por obra de todos os santos e do proletariado será um país verdadeiramente socializado.

 

Aos poucos, o hipopótamo de vidro, familiarizava-se com a vida da cidade. Em seu modo prosaico, passeava pelas ruas, conversava com estranhos e colocara até um anúncio nos jornais na Coluna dos Hipopótamos Humanistas, Jovens Libertinos e Mulheres de Corações Solitários. Procurava uma namorada, podia ser de qualquer espécie, de qualquer raça ou cor.

 

A partir daí adquirira hábitos antropofágicos, posto que comia bacurinhas e degustava um picado de porco na feira da Prata, aos domingos. Aos sábados, lambia os beiços com o caldo de mocotó.

 

Mas sua vida não era só alegria e entretenimento. Ficava também desolado com a desfiguração de Campina Grande. Dizia-se indignado com a destruição do patrimônio cultural da cidade, as ameaças que ainda pesam sobre os poucos e antigos cinemas, sobre a maior feira aberta do país, sobre o cabaré Eldorado e o triste fim da Feira da Prata, que se converteu num cercado.

Participava eventualmente de debates sobre os rumos do mundo e sobre os destinos das águas que correm.

 

Tinha uma vida frugal. Pelas manhãs ia até a banca do Orlando, comprava o jornal, trocava idéias sobre o trivial. Frequentava o São Braz e o café Aurora, quando não lhe ofereciam carona, subia a rua Pedro II, com sua habitual pachorra,parando de casa em casa. Perguntava pelos netos de Dona Chiquinha, pelo manjericão de Seu Adonias, pelo cachorro de Zé Laurentino, pelo cheiro da panela que fugia da cozinha. Vagarosamente subia aquela extensa ladeira, como passara pela vida e como a cada dia começava novamente a viver. Lá em cima, naquela casa de esquina, do saudoso Atila Almeida, detinha-se para contemplar o velho bougainville branco e divisar a noite descendo sobre as águas do Bodocongó.

 

Com o passar dos tempos, o hipopótamo de vidro, superara os tantos anos de silencio e de irreparável solidão, tinha muitos amigos e suscitava grande admiração. Um dia excedeu da conta, encheu a cara, sem grandes inibições confiou aos amigos surpreendentes revelações. De fato, não tinha vindo do Quenia. Viera do Congo. Lá participara do movimento de libertação nacional, ao lado de Patrice Lumumba. Seus companheiros resistiram o quanto puderam aguardando a solidariedade de outros povos do mundo. Somente alguns anos depois, meia dúzia de cubanos, chegaram em canoas, trazendo cinco lamparinas, um litro de querosene, dez bodoques e um saco de pães. Fizeram o impossível. Pressionados e cercados pelos mercenários a serviço mineradoras belgas, pelos exércitos do regime racialista da África do Sul, pelos agentes da CIA e pelo sionismo internacional, atravessaram a nado o lago Tanganica. Uns continuaram a lutar na Bolivia, outros vieram aportar no Brasil. Mais precisamente, em Campina Grande. No silêncio de sua alma, o hipopótamo de vidro jamais renunciara às suas convicções e aos seus ideais.

 

E chegamos, ao epilogo.

 

O hipopótamo de vidro, que fora nomeado por D Pedro II “um ser humano como outro qualquer, já era alvo de grande curiosidade e admiração. No dia   24 de junho de 2009, foi contemplado com o título de cidadão campinense e de sócio do clube dos treze e dos treze irmãos, uma associação benemerente de velhos comunistas que se reunia às sextas feiras de dia e, diariamente, nas caladas da noite na Rua Maciel Pinheiro, 170, por trás de uma pilastra do Edifício Palomo.

 

E assim, certo dia, um companheiro de lutas e labutas, disse-lhe para seu conforto:

 

Caro hipopótamo, a vida coerente, como a literatura autentica, podem ser feitas de mentiras, jamais de falsidades (Juan Rulfo).

 

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG


Data: 21/07/2010