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Artigo - A genealogia do juiz ladrão e a redenção do capitalismo civilizado

Wagner Braga Batista

 

 

O profeta Nicodemos, filho de Joseph Alois Schumpeter, da terceira geração dos fariseus convertidos, anunciava a inovação tecnológica, o prenuncio de um novo tempo e a redenção do capitalismo, quando foi surpreendido por uma chuva de gafanhotos e mentiras que tudo devoravam, apesar da aridez do deserto.

 

Nicodemos pregava em grandes extensões de terra, que por ordem de Satanás, transformar-se-iam em latifúndios. Sua missão era fazer vaticínios e salvar o capitalismo. Por penitencia, pregava  para os ventos e para os tormentos que os homens amarguravam.  Nicodemos, o profeta abestalhado, carregava a cabeça num alforje, os dedos dos pés nas mãos e o juízo trocado. Sonhara que um dia, a barbárie não teria este nome, seria o bem depurado do mal, haveria o comércio justo e a ética prevaleceria sobre o capital. Este tempo de barbárie e crimes ajuizados, chamar-se-ia capitalismo civilizado.

 

Em total abstinência de sexo, comia pedras e eventualmente pernas de gafanhotos. Como as figuras bisonhas de M’Dunga, só tomava sorvete, comia folhas de alface da Macedônia e bebia algumas gotas de água, de cinco em cinco anos. Autoflagelava-se três vezes ao dia para se equiparar nas agruras ao sofrimento de um povo invejoso de suas penitencias e sedento de novas vitórias. Este povo autodenominara-se homens de prata ou los hermanos.

 

Nicodemos andava, por força de uma redundância, com os próprios pés.

 

Naquele tempo não havia roda, nem bola, apenas provações. Em sua santa sabedoria, Nicodemos, o profeta abestalhado, criara as bolas quadradas, mas um dia teve outra visão. Não, sem antes, acudir-se em uma coisa chamada patente, que também fora sua invenção. Depois de inventar a patente e outras formas de expropriação, Nicodemos inventou a roda e o vício da autolocomoção.

 

A partir daí, vivia num automóvel, com os olhos no céu e os pés fora do chão. Ele que só conhecia bolas quadradas, valeu-se desta visão.  Viu uma bola redonda e pensou que fosse nova alucinação. Depois percebeu que as bolas redondas rolavam de cima pra baixo e em todas as direções. Podiam ser lançadas para o alto, serviam como meios de troca em atos de corrupção. A bola fora se desenhando em sua imaginação, como o maior artifício cabível nos quadrantes da  ilusão.

 

Mal sabia Nicodemos que a bola, hexaedro tão simples, que se tornara redonda , faria uma revolução. Este objeto tão simples, viria a ser instrumento de negócios escusos e o maior ofício da imaginação.

 

E assim, a bola tornava-se objeto de adoração. Tinham sacerdotes da bola, jogadores de bola, uns se diziam craques, outros cabeças de bagres. Uns jogavam desnudos, outros de fraques e alguns por pura ilusão. Neste tempo, surgiu o excedente econômico, a divisão social do trabalho, a luta de classes e os especialistas da enganação. Havia os militares e xamãs, aqueles que jogavam bola e os que faziam, apenas, preleção. Neste contexto, surgiram os sem terras, os sem tetos e os sem bolas de então. Surgiam da bola toda sorte de injunções, expropriações e ladrões.

 

Tinham os que viviam de bola, pobres meninos desgarrados que cheiravam cola, outros que comiam bola e uns tantos fadados à imperfeição. Eram irmãos dos cabeças de bagre, da tribo dos bilontras e pernas de pau, uns grandalhões coloridos de louros, vestidos de mil tesouros, portadores de brincos e de outras tantas seqüelas. Trocavam os pés pelas mãos, confundiam os pés com as bolas, tropeçavam nas pernas e por fim se enroscavam no cadarço do próprio calção. Para eles, Nicodemos inventou as chuteiras coloridas, outra de suas invenções. Nicodemos, o profeta abestalhado, este contexto pouco laborioso e profícuo, ainda insistia em predizer o capitalismo regenerado. Para acomodar tensões, os bilontras e cabeças de bagre,  registraria ainda um surrado ditado : não precisamos inventar a bola todos os dias, precisamos apenas saber usá-la.  

 

Naquele tempo não havia medidas, curvas e linhas retas. As terras eram marcadas por palmos e suas marcas ficavam gravadas nas unhas. Por ordem de um Deus contrário aos proprietários de terras e a deuses irados, quem tinha marcas de terra nas unhas poderia utilizá-las, posto que a propriedade privada ainda não tinha se instalado.  Ainda não havia exploradores, ladrões, empreendedores, grileiros, torturadores, assassinos de lavradores e toda esta classe de gente que surgiria com o capitalismo civilizado.  

 

Naquele tempo, as moscas reinavam sobre a face da terra, os cururus andavam de bicicleta e os gabirus se nutriam de favos de mel.

 

Não havia campos, nem tampouco gramados. Havia apenas bolas de meia, chapinhas de garrafas perdidas nas ruas e enterradas no asfalto, caroços redondos de frutas e chutes desperdiçados. Depois,  inventaram as balizas, os chute a gol e os pênaltis desperdiçados.

 

Foi um tumulto generalizado. Eram multidões jogando entre si, aquele jogo que se chamava de guerra, reproduzindo na terra o conflito dos deuses irados. Lutavam entre si banqueiros e latifundiários, príncipes e reis, herdeiros do vil trocado, especuladores e perdulários, ladrões e estelionatários, toda esta súcia de homens honrados, responsáveis pela acumulação primitiva, nos primórdios do capitalismo civilizado. Juntaram-se a chusma raivosa trezentos pares de deuses irados e o Arquiduque Vil Teixeira, dono da CBF, único detentor do direito deste consuetudinário.

 

Seus correligionários, pústulas por nomeação, os heróis da enganação, presidentes de entidades fantasmas, agentes do marketing esportivo e alguns tantos empresários, que não eram simples ladrões, valiam-se de toda sorte de artimanhas e de hábil manipulação. Seqüestravam a ingenuidade de crianças que viam televisão, ludibriavam a imaginação de mulheres e marcavam homens com brincos de diamantes, com o ferro das vaidades e com o fogo da ambição.

 

Então Nicodemos, o profeta abestalhado, para evitar o fim dos tempos e a prematura decadência do capitalismo civilizado, registrou outra invenção, chamada de ópio do povo, que também se tornaria uma nova religião.

 

Nicodemos pôs fim aos exércitos, ao invés de homens em armas, inventou uma falange que não era fascista. Era um agrupamento esquisito, composto por dez homens que se utilizavam apenas dos pés e de um tal de goalkeeper, que ao invés de pegar com os pés, chutava a bola com as mãos. Nicodemos criara os times, mas não registrara esta invenção, porque ainda não detectara sua verdadeira função.

 

Sua ação pacificadora  se disseminou pela Mesopotâmia, pelo norte da África, pelo oeste da terra dos bárbaros e pelo mundo cristão. Os times e casais de times, então fizeram juras de amor, casaram-se em igrejas, procriaram e se espalharam pelo velho mundo. Cumprindo a predição de Nicodemos, cresceram e se multiplicaram para salvar o capitalismo civilizado. No entanto, o verdadeiro sentido dos times só foi descoberto num novo mundo, chamado terra brasilis, num bairro conhecido como Andaraí, alguns séculos depois.

 

Ali havia um time autentico, que jogava pelada nas ruas, formado apenas com meninos de pés descalços. No entanto, para desgraça de todos, para degeneração dos times, passaram a comprar e vender os meninos das ruas do Andarai.  Alegavam que tiravam os meninos das ruas, mas compravam cada parte de seu corpo, a peso de ouro. Um agente vendia a perna esquerda, outro seu pé direito. Empresários anunciavam seus dribles, o marketing suas cabeçadas. Os pobres meninos, em retalhos, eram comercializados em troca de dentaduras, de aparelhos odontológicos, de roupas com logomarcas, de carros importados, de sonhos distantes, cada vez mais afastados.

 

Naquele tempo, Henry Thierry e Machado de Assis já falavam entre si. Trocavam doutas opiniões sobre a cultura das ruas, vida depois da morte e sobre a metamorfose dos times. O primeiro dizia: Podemos tirar um menino das ruas do submundo, mas não podemos tirar o submundo deste menino. Fora brilhantemente complementado por Machado de Assis, que seria futuramente o maior escritor da língua portuguesa: Thierry, os meninos são os pais dos adultos.

 

Naquele tempo, o futebol, que ainda não havia sido criado, era uma brincadeira de meninos descalços, até que os barões do esporte saudável, os deuses do marketing esportivo e os agiotas confederados transformaram-no num grande negócio em nome do capitalismo civilizado.

 

E assim foram sendo criadas, uma a uma, as deformidades dos times, os coadjuvantes de jogadores, os simulacros de jogos e o futebol adulterado.

 

Meus amigos, agora podemos nos debruçar sobre esta instigante questão: o que surgiu primeiro o futebol ou o juiz ladrão?

 

Para desfecho desta tragédia, deuses irados com a possibilidade de glória dos antigos times, das tantas vitórias do tricolor, inventaram  aqueles que se diriam juízes e, ato seguinte, ofereceram-lhe um sinal. Um metagrito, chamado de  apito. Na falta de uma linguagem que se adequasse ao apito, inventaram um cartão. E na falta de juízes decentes, inventaram o juiz ladrão. Quatrocentos séculos depois, por designação de Mario Vianna, com dois enes, seriam  sopradores de apito.

 

Foi neste tempo, anterior ao tempo chamado histórico, que os deuses irados criaram os juízes de futebol. Estas bizarras criações, anteriores às linguagens e a todos seus próprios delitos.

 

O juiz ladrão não evoluiu de um simples coacervado, nem tampouco é fruto da seleção natural. É fruto de relação promíscua, entre patrocinadores, empresários de jogadores, confederações esotéricas, agentes da CIA  e  grandes corporações transnacionais.

 

O debate sobre esta hedionda metamorfose não se interrompe aí.

 

Há sérios indícios de que o juiz ladrão não nascera de um ventre. Diversamente do que se diz, tal qual um cogumelo, surgira dos excrementos. O juiz ladrão inicialmente fora classificado com um coprófilo, oriundo das fezes de algum bicho que nunca existira. Experiências posteriores realizadas in vitro , em renomados laboratórios, pretendiam reconstituir as mesmas condições que propiciaram o surgimento deste tipo de vida. Falharam. Tentaram criar o juiz isento, imparcial e justo. Conseguiram criar a vida humana, mas jamais conseguiram corrigir este erro da natureza, que culminou com o surgimento do juiz ladrão.

 

Pesquisas posteriores, explicitaram a genealogia do juiz ladrão. Este prócer do capitalismo regenerado,  conseguira um habeas corpus, saíra da prisão e urdira, como se fosse geração espontânea, uma forma de vida reles e desprezível no meio de excrementos. 

 

Não seria temerário afirmar, com base nos evangelhos e nas patentes de Nicodemos, o profeta abestalhado, que o juiz ladrão como um oportunista nato, antecipou-se aos fatos e contrariou toda sorte de genealogia para salvar o capitalismo civilizado. Como um legitimo empreendedor e franco atirador, célere como um raio, reproduziu as  leis do mercado e os costumes vigentes,  pôs-se a roubar .

 

E assim o juiz como um esporo, correu a terra levado pelo curso dos ventos. Vinha grudado em solas de sapato, no cheiro das coisas imundas, no valor agregado de produtos supérfluos e de utensílios degradados. Beneficiava-se da liberdade existente para exercitar livremente o direito de transitar e roubar. Tornara-se cultor da livre iniciativa, da liberdade de ir e vir, de roubar e fugir. Era a favor dos pobres serem pobres e da pobreza existir. Inspirava-se na magnificência de homens probos e ricos que sempre asseguraram o direito da pobreza existir. Estes que, de peito aberto, em praças públicas e campos de futebol, com o apito na boca, transformaram em ícones da generosidade dos que professam o direito de sonegar, especular, explorar  e roubam para o bem do porvir.

 

O juiz ladrão, atendendo ao chamado de Nicodemos, o profeta abestalhado, tornou-se consultor da FIFA e do capitalismo civilizado. Faz palestras em centros de excelência e defende o ensino privatizado.

 

Proclama as virtualidades do roubo, como o mais precioso instrumento do sistema restaurado. Contudo, faz restrições. Esclarece que o roubo tem que ser roubado com regras, obedecendo a ética do sistema, de forma escrupulosa e decente:

 

O roubo, esta instituição universal e absoluta, dentro da legislação vigente, tem que ser feito de forma decente, dentro das leis, como combinado, para que salvemos da destruição o capitalismo renovado.civilizado. E preciso que tenhamos a grandeza dos baluartes do capitalismo civilizado.

 


Data: 20/07/2010