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Artigo - A revolta dos pinicos e as alucinações de um cristão em Brasília

Wagner Braga Batista

 

"Sonhei que o Papa enlouquecia

E ele mesmo ateava fogo ao Vaticano

E à Basílica de São Pedro.

Loucura sagrada!

Porque Deus atiçava o fogo que os

Bombeiros, em vão, tentavam extinguir.

O Papa, louco, saia pelas ruas de Roma

Dizendo adeus aos embaixadores

Credenciados junto a ele

Jogando a Tiara ao tibre.

Espalhando pelos pobres, todos,

O dinheiro do banco do Vaticano.

Que vergonha para os cristãos!

Para que um Papa viva o Evangelho

Temos que imaginá-lo em plena loucura" *

 

Como D Helder, ele também, de vez em quando, alucinava.

 

Em transe enxergava todos andando em transportes coletivos, circulando no horário previsto. No ônibus e no trem, os jovens davam lugar aos idosos.  Homens e mulheres às gestantes. Nas ruas, pessoas alegres, diziam bom dia.

 

Chegava à repartição no horário de praxe e  todos estavam trabalhando. Não havia fila, cansaço e pessoas humildes sendo humilhadas. Os funcionários eram do público e o público não era da fila de espera. Não havia servidores de servidores públicos e as xícaras de café se lamentavam da ausência de funcionários na cantina.

 

Visitava a Câmara dos Deputados e o plenário estava repleto.  Os assessores, apadrinhados e bajuladores aderiam ao trabalho voluntário e colocavam asfalto em rodovias públicas. Passava pelos tribunais de justiça, ao invés de fáusticos palácios, via casas simples, acolhedoras dos injustiçados.

 

Abria as prisões estavam vazias de gente pobre e repleta de homens bem vestidos.

 

Os jornais não mentiam, os canais de televisão aboliam as imbecilidades, bancos estatais taxavam a especulação financeira e os agronegócios doavam terras para o plantio da felicidade.

 

O lixo desaparecera da face da terra, porque a hipocrisia, a vaidade, o desespero, a carência afetiva e o tédio não mais habitavam a moradia das classes médias.

 

As fábricas criavam milhões de empregos, patrões pagavam melhores salários e o excedente da produção era distribuído com o povo faminto. A educação e os serviços de saúde eram um direito de fato.  O povo tinha dúvidas se queria o socialismo para a amanhã ou para a semana seguinte.

 

Contudo, estas alucinações não ocorriam apenas durante o dia. À noite também tinha delírios.

 

Imaginava que uma coisa esquisita viera morar embaixo de sua cama. Como estava em Ceilândia, periferia de Brasília, imaginou que fosse um penico voador.

 

Segundo lhe disseram, estes objetos indignados, tinham aprendido a fugir na calada da noite. Envergonhados com tanta bandalheira, saiam furtivamente de mansões próximas ao grande lago, de escritórios de lobistas nos arredores palacianos e de luxuosos gabinetes em prédios públicos. Fugiam para se refugiar em locais mais simples e receptivos. Infelizmente traziam dejetos e mau cheiro. O que fazer?

 

Imaginava, então, que um destes penicos de porcelana, ouro e prata teria fugido para se homiziar em sua casa. Embaixo de sua cama. Temeroso de se defrontar com a própria loucura, evitava está terrível constatação. Supunha que lá estava, mantinha-se apreensivo, porém negava-se a ver e constatar esta aberração.

 

Sabia que estes penicos, pela própria vida pregressa, foram condenados ao infortúnio. Apesar de buscarem a redenção, traziam maus hábitos e muitos vícios herdados de seus donos. Tinham a empáfia dos pinicos de reis, de oligarcas, de latifundiários, de juízes, de banqueiros, de proxenetas do luxo e de ministros de Estado. Eram vaidosos e arrogantes, falavam em voz alta e não se davam por convencidos de que apenas pinicos. Pinicos incrustados de pérolas, de ouro e diamantes, mas apenas pinicos.

 

Enfrentando o terrível dilema dos pinicos arrependidos, havia os que se entregavam à própria sorte, à bebida, que caiam desvalidos e penicos perseverantes que buscavam alternativas.  Entravam para a escola, buscavam trabalho, lançavam-se na militância política, aderiam à luta dos pobres, mulheres, minorias e povos oprimidos. E deste modo, não mais se viam como penicos da burguesia.

 

Despojavam-se do ouro e prata que lhes cobriam e do mundo de excremento a que, antes, pertenciam.  Estes penicos, não mais ficavam embaixo da cama. Tampouco se escondiam.

 

Vinham a público, faziam pronunciamentos em praça pública, convocavam objetos do acaso, descartados, sem prazo e sem função. Chamavam homens, outros penicos e tantos objetos inutilmente fabricados à viver sua própria redenção. Às vezes tinham bons resultados, às vezes não.

 

O fato é que em poucos anos, poucos dias, os penicos foram desaparecendo, sumindo de circulação.

 

Não se falava mais em pinicos, nem se tinha mais informação. Os meios de comunicação, sob controle, falavam de coisas banais e omitiam esta transformação. Arautos das boas notícias e repórteres de ocasião, negavam-se a falar a verdade, não admitiam esta revolução.. Não mencionavam a revolta dos pinicos, diziam apenas que tinham saído de uso ou perdido a função.

 

Pois bem, meus amigos, esta narrativa não encerra aí. Posto que o personagem desta estória, não é o penico, não é um simples objeto, mas um homem, objeto da sua própria alucinação.

 

De tanto insistirem que aquilo era um transe, um delírio ou divagação, certo dia encheu-se de confiança e resolveu olhar embaixo da cama.

 

Para surpresa sua e de todos que lhe faziam pressão , deparou-se com um pinico que não era fruto de sua imaginação.  

 

No pinico de porcelana, havia uma pequena placa de bronze. Nela estava escrito: Urinol de Sarney, representante dos  últimos  remanescentes da classe dos pinicos não regenerados.

 

 

* Citação do poema “Loucura Sagrada” extraído do filme “Dom Helder Câmara, o santo rebelde”, direção de Erika Bauer, Brasil, 2004. 


Data: 06/07/2010