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Artigo - Saramago (1922- para sempre)

Wagner Braga Batista

 

 

José Saramago faleceu no inicio da tarde de 18 de junho de 2010...

 

Estávamos em meados da década de 1990. Pouco havia lido da obra deste autor português. Alguns ensaios e entrevistas. Uma de suas entrevistas muito me impressionou. Vivenciávamos o auge da restauração liberal na América Latina. Proclamava-se o pensamento único, o fim da história e o desprezo pelas ideologias. Tudo e todos que não comungassem com esta cartilha estavam sendo lançados na vala comum dos ultrapassados.  Intelectuais, artistas e acadêmicos, com suas idiossincrasias e vaidades, para não serem vistos como ultrapassados,  identificavam-se súbita e incondicionalmente com o novo credo liberal.

Saramago remava contra a corrente. Preservara sua integridade e sua dignidade intelectual, postura cada vez mais rara naqueles dias, assim como nos dias de hoje

 

Pouco tempo depois, 1995, seria contemplado com o Premio Camões, maior laurel concedido a escritores da língua portuguesa.

 

Neste contexto, tratava-se de reproduzir fielmente os preceitos do Consenso de Washington. A desfaçatez tornara-se virtude. Proclamava-se a democracia num mundo totalitário. Decretava-se o respeito à diversidade, num mundo onde aumentavam as desigualdades. As novas virtualidades ajustavam-se à cultura do dinheiro e eram deglutidas ao sabor da geléia pós-moderna.  Relações sociais notabilizavam-se com outro nome: negócios. E o grande negócio era ser esperto, inescrupuloso e obter vantagens a todo custo.

 

O Brasil procurava se ajustar aos novos tempos e aos novos paradigmas. Estes ajustes espelhavam-se na figura paradigmática de FHC, o fausto estelionatário. O intelectual que cinicamente dirigiu-se a seus pares solicitando que se esquecessem do que havia dito ou escrito, para que pudesse se sentir mais à vontade para renegar suas próprias idéias. Neste contexto de desfaçatez, deveríamos todos despir-nos de qualquer veleidade critica para nos incorporar ao novo mundo globalizado e liberado. Vendermo-nos todos no mercado de comoditties e de adesões ao preço de ocasião.

 

Foi neste contexto, que a postura deste escritor me saltou aos olhos. Em sua solene melancolia, resgatava valores supostamente obsoletos, indispensáveis à sociabilidade. Chamava atenção para sentimentos e relações sociais que a mídia banalizava e a ideologia do mundo globalizado tentava varrer de nossas casas, de nossas vidas. Arrancar de nossa carne. Primeiro, a valorização das particularidades de cada cultura, a importância das raízes que nos ligam ao nosso chão. E isto nada tinha a ver com patriotismo ou chauvinismo.

 

Saramago, naquele universo de indivíduos bem sucedidos, resgatava os homens simples, a sabedoria dos iletrados e a importância da cultura laica de comunidades rudimentares no mundo dito globalizado. Esgarçava marcas indeléveis da sua infância, da pobreza, da pouca comida, das moscas, dos porcos e do frio. Estes seriam  fundamentos de sua literatura. O homem, sua carne e tudo aquilo que a nova cultura asséptica rejeitava. Assim como Paulo Freire, recusava-se a falar portingles, expressava-se com autenticidade e proficiência no idioma de Padre Antonio Vieira. Seus olhos e seu pouso não estavam em Nova Iorque, Londres ou Paris. Estava em um fabuloso mundo, Lanzarote, sua biblioteca, no solitário refúgio das Ilhas Canárias. Lá, onde viveria em idade avançada um emblemático e intenso amor com Pinar Del Rio, 28 anos mais jovem.

 

Premio Nobel de literatura em 1998, primeiro escritor de língua portuguesa, entre tantos outros que já haviam sido indicados, falou ao mundo da hipocrisia e da cegueira que parcela significativa dos que escrevem e opinam não queriam reconhecer. Reconhecer em si próprios.

 

Assim como outro autor herético, Pier Paolo Pasolini, que recebera grande influência da formação religiosa, a obra de Saramago tem como contraponto o ideário da igreja católica, a principal matriz da cultura ocidental moderna. Se examinarmos, muitos de seus livros discorrem sobre a efetividade, a manipulação e as digressões de cânones religiosos, sobre seu impacto na vida mundana.  Identificou a capacidade do catolicismo se apropriar e adulterar valores e práticas fundamentais à vida humana. Por meio de parábolas, descreveu o movimento por meio do qual a religião se converte numa ideologia. Desenhou o movimento por meio do qual se processa a a apropriação de preceitos religiosos pelas modernas ideologias laicas instrumentalizadas pea economia de mercado. O  diálogo com a igreja católica não o transformou num escritor reticente, retrogrado ou alheio à modernidade, à atualização. Pelo viés crítico, absorveu os mitos, simbologias e elementos do imaginário religioso para retratá-los à luz de pulsões e de restrições do mundo atual. Por meio da ficção, atualizou reflexões que sempre estiveram presentes na cultura humanista, cotejando-as com deformidades do nosso tempo.

 

Costumeiramente era interpelado sobre seu agnosticismo e aparente ceticismo, pouco condizente com as edificantes mensagens que nos oferecia. Com realismo, retrucava as indagações de seus interlocutores: "Não sou pessimista. O mundo é que está péssimo."

 

Neste contexto, li uma entrevista publicada na Folha de São Paulo. Tenatarei reproduzi-la por meio de exercício de memória.  Mencionava a devastação de valores provocada pela avalanche liberal. Comparava este quadro com a destruição de uma cidade.  O que nos dizia ? A cidade tinha sido destruída, mas intimamente ele tinha a certeza que voltaria a sair do chão. Seria reconstruída, porque as cidades são indispensáveis ao homem. São seu habitat. À luz desta imagem, reportou-se ao colapso do socialismo real. Sem hesitação, afirmou. É como a cidade destruída. Um dia ressurgirá revigorado e pujante. Ressurgirá, porque como as cidades, é uma exigência da sociabilidade humana.

 

Comunista convicto, retrucava artifícios ideológicos que forneciam novas cores a este carcomido mundo perverso. Não se pretendia portador de grandes mudanças, mas ironizava aqueles que se locupletavam com o anúncio de boas novas utilizadas para celebrar antigas mazelas. "Eu sou um comunista hormonal, meu corpo contém hormônios que fazem crescer minha barba e outros que me tornam um comunista. Mudar, para quê? Eu ficaria envergonhado, eu não quero me tornar outra pessoa." ( entrevista à BBC, 2007).

 

A projeção da vida de um homem não deve ser reduzida à dimensão de suas crenças, por maior que seja seu alcance, contudo a vida de nenhum homem independe de suas convicções. Mesmo de indivíduos abjetos que afirmam não tê-las para se moverem de acordo com eventuais conveniências.

 

Como uma semente de integridade, morreu um comunista, renovando ideais que inspiraram toda sua existência. Saramago, sementes de cinzas e de integridade que depositadas em Portugal se espalham e renascerão sobre a face da terra.

 

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG


Data: 21/06/2010