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Artigo - O novo mundo virtual e os homens rudes que cospem no chão

Wagner Braga Batista

 

 

O mundo se virtualizava.

 

Os jornais prenunciavam o fim dos males que acometem todos os homens e, quiçá, o fim da humanidade.  Suas manchetes anunciavam a nova economia, o e-commerce, o teletrabalho e uma nova religião. Uma religião sem crença, propícia à nova realidade sem cheiro e sem pele, intangível ao toque dos dedos.

 

Novas estratégias de marketing prometem o capitalismo sem sobretrabalho, sem lucro e harmoniosamente civilizado.

Companhias de seguro antecipam-se na venda de apólices para seletos homens saudáveis, perfumados e decentes, que desejam viver neste mundo civilizado. Neste mundo futuro de sonhos irrefeitos, de sem sentimentos e de invertebrados. Sem qualquer vestígio de homem e de trabalho humanizado. Ciborgs serão garantias de liberdade privada, em meio à ausência de tudo e de todos, no mundo desumanizado, no capitalismo civilizado.

 

Alheios a tudo isto, Agamenon e Etelvira, eram, apenas, hoje. Caminhavam juntos, como em todos os dias. Neste dia especial, posto que era domingo, outros mortais também passeavam. Saiam às ruas, libertos de suas angústias, de privações costumeiras e do trabalho mal pago. Guardaram infortúnios e humilhações nas gavetas. Desprezaram a incerteza. Hoje era domingo, um dia de sol, integravam-se à paisagem do parque e à própria beleza.

O mundo se virtualizava, mas eles não sabiam.

 

Ignorantes, como lhes chamavam os patrões, pouco sabiam. Os patrões eram aqueles homens que também não sabiam que eram homens. Homens que não sabiam que existiam os domingos e que os outros homens, ignorantes, andavam com seus próprios pés, tinham fome e sede como em outros dias. Aos domingos, comiam pipocas.

Mas os jornais, insistentes, reiteravam que o mundo era outro.

 

Como era domingo de sol, o parque estava repleto de homens, mulheres e crianças ignorantes. Que além de seus medos e eventuais alegrias, queriam apenas sentar na grama. Queriam apenas correr e saber que era apenas domingo. Reconhecer, naquela manhã, que era domingo e, neste dia, não havia trabalho.

Mas o mundo se virtualizava.

 

Como eram ignorantes, também não sabiam que o trabalho que lhes oprimia, a outros gratificava. Como eram ignorantes, não sabiam que o trabalho que lhes empobrecia, cada vez mais, alguns poucos enricava. Como eram ignorantes, não percebiam que o trabalho que lhes entristecia, alegrava aos donos de tudo, da vida e da falsa imagem do mundo que se virtualizava.

 

Agamenon e Etelvira, alheios a todos os vícios do mundo que se virtualizava, viviam as circunstancias da vida presente. Ignorantes, sabiam apenas que seus sentidos existiam e que os pombos ainda não haviam fugido das praças, apesar de ausentes de todos jornais. Dos jornais que diziam falar de tudo, mas só falavam do novo mundo novo que se virtualizava. Estes jornais esquisitos, que falavam de coisas distantes que não moravam no parque e tampouco entendiam as palavras que os homens diziam na praça. Destes jornais que não falavam dos bancos de jardins, dos pássaros, das arvores, da grama, do sol e de tantas pessoas que habitavam os domingos. Estes jornais que cultivavam distancias e só falavam do mundo que se virtualizava. Destes jornais que só falavam de ausências e de coisas desossadas, que não se reconheciam em homens que se alimentavam.

 

Mas os jornais bem feitos, bem escritos e refinados, com esmero e eficiência, falavam do mundo que se virtualizava. Falavam a língua culta e a palavra burilada. Eram feitos de pedras coloridas e verdades inventadas. Anunciavam um novo mundo com imagens retocadas. Falavam de uma segunda pele que não podia ser tocada. De um sentimento tão pungente, que não seria próprio da gente, mas da gente que anunciavam. Tudo isto só seria possível no mundo que se virtualizava.

 

Agamenon e Etelvira caminhavam felizes, alheios ao mundo que se virtualizava.

 

Sabiam que havia o sol, o domingo e um mundo real, que sequer os notava. Um mundo de contradições, que a chamada imprensa livre ignorava. Um mundo de contradições que os jornais de domingo, libertos do sol e do domingo, decerto nos libertavam. Também nos livrariam das pulsões de homens rudes, que cospem no chão, posto que não haveria mais chão no mundo virtualizado. Nos livrariam de homens tristes e desgarrados, bem como de mulheres imundas, prostituídas e desprezadas. Das crianças ingênuas, que acreditavam nas fantasias do sol e do domingo, mas também não viam o mundo que se virtualizava. Que acreditavam apenas que havia o futuro, Agamenon e Etelvira, em meio a tantas contradições, de mãos dadas.

 

 

Wagner Braga é professor aposentado da UFCG


Data: 11/06/2010