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Artigo - A greve dos torturadores

Wagner Braga Batista

 

 

Nos presídios, cadeias e cárceres privados houve manifestações de júbilo e de incondicional solidariedade.

 

Todos os presos foram, peremptoriamente, favoráveis à paralisação do trabalho e à greve dos torturadores.

 

Num misto de exaltação e de alivio, os presos saudaram esta arrojada iniciativa dos torturadores, que reivindicavam melhores condições de trabalho, propinas mais elevadas e instrumentos mais eficazes de tortura. Ainda que não concordassem com suas reivindicações,  aplaudiram intensamente a interrupção de suas atividades.  Sairiam do sufoco enquanto durasse a greve.  

 

Mais do que um entusiástico  apoio, torciam para que a greve fosse por tempo indeterminado. Se possível, que fosse para sempre, para a vida toda e nunca se encerrasse.

 

Porém, esta greve não teve a complacência do Minimagistério Público.

 

Em nota conjunta , dirigida à Associação Brasileira dos Torturadores, filiada à CIA, e à imprensa falada e subscrita por jornalistas prepostos de interesses escusos, as Secretarias de Segurança Pública, as Chefaturas de Polícia, os Responsáveis por Milícias Privadas, os Latifundiários Ecoeficientes, os  Donos de Quarteirões e de Supermercados, bem como os Síndicos de Condomínios de Luxo e de Lares Respeitáveis, conclamaram à volta ao trabalho.

 

O Minimagistério Público manifestou-se nos seguintes termos. Inicialmente emitiu seus votos de apreço aos torturadores, de respeito à classe e aos seus relevantes serviços. Reiterou sua deferência a seus representantes, mas declarou que a greve era ilegal. Não poderiam privar presos, fodidos e miseráveis deste serviço essencial, tampouco a sociedade envolvente da prática de sevícias e de tratamentos hediondos, indispensáveis à manutenção da ordem e dos bons costumes.

 

O promotor se disse isento. Advertiu que estimava antigos e novos torturadores, porém proporia o mesmo tratamento utilizado contra todos trabalhadores que fazem greve. Citou a CLT e os demais dispositivos que regulamentam o direito de greve, portanto torturadores deveriam ser tratados com justiça e equidade, sem distinção dos demais trabalhadores e tampouco sem as habituais regalias.

 

A greve dos torturadores afligia a imprensa verde e marrom. A verde porque o noticiário parecia acometido de icterícia. Não tinha mais sangue para contrabalançar o verde de matagais onde os torturadores desovavam cadáveres. A imprensa marrom porque não tinha mais o que dizer, além dos discursos do sadoeconomista  Dr Serra contra o MERCOSSUL.

 

Montaram um lobby favorável à agilização do julgamento dos torturadores. Desculpem-me, estes foram anistiados, são inimputáveis e não serão julgados. A imprensa verde e marrom pleiteou, apenas, uma sentença favorável à greve dos torturadores.

 

Sensível à postulação da imprensa verde e marrom, o Excelentíssimo latinfundimagistrado, Dr Gilmar Grilheiro Orumundis y Vendis,  apressou-se a examinar o processo.

 

Chamado em juízo, o dirigente da associação dos torturadores de forma muito respeitosa, dirigiu-se ao juiz

Meritíssimo, o Sr há de convir que estamos sobrecarregados de trabalho, a miséria está crescendo e as cadeias estão abarrotadas de pobres e negros. Não temos descanso. Trabalhamos diretamente com este povo infecto, sem direito à insalubridade, à periculosidade e à abono pelo sumiço de cadáveres.  A insegurança que nos acomete quando espancamos e mutilamos seres indefesos é enorme. Contrariando todos preceitos da segurança do trabalho, só dispomos de armas e algemas . Não cumprem as exigências da CIPA e não nos fornecem equipamentos de proteção individual – EPI. Nossos instrumentos de tortura não são normatizados, nunca houve estudos de ergonomia que os adequassem as nossas bestiais dimensões.

 

Acrescentou:

Excelentíssimo, somos acusados de improdutivos. Mas como reclamar da produtividade do nosso trabalho se nos oferecem recursos obsoletos. Vossa Excelência há de convir que trabalhamos em condições precárias, com instrumentos medievais, pau de arara, palmatória, afogamento, entre outros. Durante o regime militar éramos  mais valorizados. Houve inovação, houve assessoria. Trouxeram especialistas norteamericanos e franceses com prestimoso currículo e larga experiência em tortura. Promoveram intercambio cultural com outros países do cone sul. Pudemos fazer estágios em outras agências de repressão e informação, bem como em centros de tortura. Ensinaram-nos novas técnicas e o uso de recursos mais atualizados. Introduziram em nosso setor de atividades a tortura psicológica, a máquina de choques, a cadeira do dragão e mesmo sofisticados recursos farmacológicos, a exemplo do pentatol. Hoje estes equipamentos estão sucateados, não dispomos nem mais de simples seringas . Nossos agentes, caíram em depressão. Estão inconformados e estressados, tornam-se usuários de drogas para fugir desta triste realidade. Defrontam-se com a terrível contingencia de furtar as poucas seringas que dispomos para se drogar.

 

Como não havia contestação, prosseguiu:

Meritissimo, torturamos em condições de trabalho extremamente adversas. Vossa excelência precisa ver para crer. Praticamos o verdadeiro apostolado. Torturamos por consciência cívica. Continuamos a trabalhar para não privar pessoas, como o senhor,  de nossos indispensáveis serviços. Mais, ainda sim, estamos sendo discriminados e ultrajados por políticas publicas que desprezam nossos mais elementares direitos. Por isto, exigimos justiça

 

Revoltado, denunciou:

 Os nossos direitos de torturadores são freqüentemente violados. Trabalhamos em condições aviltantes, na escuridão de calabouços, em casas clandestinas sem dono reconhecido, sem habitat e sem alvará. Em ambientes que não são adequados ao mais elementar interrogatório, nem ao mais desprezível ser humano. Porém, somos Incansáveis, durante o dia ou na calada da noite.

 

Concluiu, a seguir:

Esta é a nossa triste e dolorosa realidade. Nós, torturadores estamos sendo duramente espoliados. Nós torturadores de famílias e homens de bem, estamos sendo transformados em reféns de políticas de direitos humanos. Há que se reconhecer a vexaminosa situação a que está submetida a classe dos torturadores e a própria tortura em nosso país. Precisamos reverter este quadro, criar um plano de carreira, cursos de capacitação para torturadores e instalações mais adequadas para o digno exercício de nossa profissão.

 

O juiz, o emérito e venerado Dr Gilmar Grilheiro Orumundis y Vendis, homem probo, imparcial e adepto do bem dos homens e dos bons costumes, com elevado senso de justiça, pediu apenas vinte mil reis pela sentença. Prolatada do seguinte modo:

Deferiu o  pedido de recompensa por dez presuntos e condenou o Estado a pagar dez mil reais por cabeça, transferiu a indenização devida a seus familiares para bingos e clubes de serviços, multou o sindicato com o direito à anulação de uma dívida pública, elevou  a gratificação dos torturadores chefes e de seus auxiliares diretos com direito a dizimo para si próprio, aproveitou para empalmar dez mil hectares de terra no pantanal, não só para si próprio, cobrou do Governo as necessárias condições para o indispensável exercício desta atividade, pagou as custas do processo com recursos do erário público, declarou ilegal a greve e, inflexível, exigiu que os torturadores voltassem ao  trabalho imediatamente.

 

Moral da estória: qualquer analogia com mudanças Plano Nacional de Direitos Humanos não é mera coincidência.

 

 

Wagner Braga é professor aposentado da UFCG


Data: 10/06/2010