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Artigo - O franco diálogo entre a cachorrinha Pretinha e Amundson ou porque me convenci da importância da regulamentação da profissão de designer - Parte 1

Wagner Braga Batista

 

 

Meus amigos, temos uma cachorrinha: Pretinha. Atende também atende pelo nome de Dilma. É uma cadela simpática e sorridente, como vocês verão algum dia.  Pois bem, Pretinha tornou-se uma celebridade.

 

Ao longo de sua vida adquiriu habilidades extraordinárias. A primeira delas: fugir. Tinha medo de tudo e fugia de tudo. De casa, de compromissos e até de ladrões de galinha que assolam as pobres coitadas. Depois ficou corajosa. Pensou então em ser designer.

 

Dando vazão a esse instinto, talento ou vocação, apurou o faro. Deste modo. Farejava designers à longa distância, no cheiro da cruviana ou nas brisas do Aracati. Designers do Ceará, do sul do pais, do norte de não sei onde ou de logo ali. Como se diz no nordeste, Pretinha era o cão chupando manga. Não adiantava se disfarçar de designer, voar como colibri, Pretinha pescava no cheiro toda sorte de andante, voante ou nadante, quanto mais de qualquer farsante.  Quando o pressentia um autentico designer derramava-se em festa. Por este ato de identificação e solidariedade, imaginava-se uma designer.

 

É necessário observar, que Pretinha não é qualquer uma. É uma cadela com invejável cultura humanista, com especial inclinação para a filosofia. No seu afã de aprendizado, devorou todos os livros do grande mestre Leandro Konder. Também não dispensou revistas e jornais. Frente a esta obsessão por manuscritos, impressos e toda sorte de imagens, definiu-se como  designer gráfica.

 

Dotada de inegável bom senso e refinado apuro estético, na juventude roeu entalhes, gravuras e desenhos. Desde novinha, tinha uma queda pelo design suíço e pelo despojamento germânico.  Correspondeu-se com ex-alunos da escola de Ulm e em seu currículo consta a meticulosa análise e dilaceração de vários objetos da Braun, bem como de uma coleção inteirinha da revista Graphis. Por isto, achava mais do que natural se considerar uma designer.

 

Mais tarde, dedicou-se ao estudo de línguas latinas. Destacou-se no colégio episcopal de Roma, pelos seus estudos sobre a influência do marketing na consagração e generalização de besteiras no ensino de desenho industrial. Por isto, também se considera professora e designer.

 

Com todo este talento, além de se tornar uma celebridade, pontificando em colunas de jornais e talk shows, esmerou-se em debater com esotero designers. Esse gênero de designers frutifica em todas estações. Eles surgem espontaneamente do nada. Aparecem como se fossem encarnação. Por isto são classificados como esotero, de esoterismo, e o resto todos sabem. Reportando-se constantemente a esta cruzada cívica contra falsos designers, Pretinha sentia-se injustiçada por não ser devidamente reconhecida como uma verdadeira designer.

 

Não tinha postulações profissionais, pretensões estéticas ou veleidades artísticas. Ao que tudo indica, passara da idade para cultivar essas vaidades. Tampouco, importou-se com sua aparência, primando apenas pelo seu bom gosto e pela produção intelectual. Participava de bienais, de eventos técnicos, prestava consultorias e, eventualmente, escrevia para alguns periódicos não especializadas. Por isto, também se considera uma  designer.

 

Graças a seu empenho, tornou-se uma figura proeminente. Há poucos dias, afinal a cadelinha fora reconhecida como designer . O reconhecimento foi efetivado pela Bafo,  bocas,  bundas  e vaidades, revista de reflexão narcísico-científica, humor e vulgaridades.  Isto feito, recebeu convite para ser jurada num concurso de design. O concurso valorizada o anatomo-patolológico design . Premiaria a cômoda mais bonita, exuberante, espalhafatosa e rococó que seria utilizada para enfeitar a sala de estar de repuxada e luxuosa ecossenhora do Partido Verde e Fucsia. Esta ecosenhora, chamada Anastácia, coincidentemente, também se julgava designer e se sentia uma jovem uma princesa esquecida.

 

Deste júri participaram um emérito colunista social, um insigne pastor evangélico, dois brincos de notáveis jogadores de futebol, um renovado comentarista de bilhar, três ínclitos vigaristas, uma massagista de casas noturnas, um torcedor do prefeito de São Paulo e dois curiosíssimos especialistas, autointitulados designers. Um deles, o Amundson. Foi aí que Pretinha conheceu este impoluto personagem, participante, como ela, do júri.

 

Como toda cadela, Pretinha é de uma fidelidade canina. Inicialmente pensou em conferir o premio aos seus donos. Voltou atrás, porque apesar desta pulsão passageira, sempre foi uma cadelinha ética.

 

No entanto, o concurso reservava-lhe desagradáveis surpresas.

 

Ignorando suas veleidades críticas, outro jurado instou-a a conceder o premio à sobrinha do patrocinador, que por sua vez também se autointitulava designer. Alegou que havia valores e compromissos morais a zelar, bem como muita grana em jogo. Adiantou que o resultado já havia sido previamente encomendado e acordado, bem como a sua divulgação  agendada em coluna social da revista Bafo, bocas, bundas, vaidades e sem vergonhas nas caras, concorrente da Bafo,  bocas,  bundas  e vaidades . Acrescentou que, a depender de seu voto, seria novamente convidada a ser jurada. Quiçá, futuramente, presidente de júris.

 

Pretinha sempre fora uma cachorrinha decente. Com lágrimas nos olhos, retirou-se do evento. Recusou-se a emitir seu voto.

 

Retornando para casa, encontrou Amundson, que dignamente também não entrara nesse jogo de cartas marcadas.

 

Externou seu constrangimento:

Há certos ambientes que me causam náuseas. Neles proliferam dissimulações e vaidades que me provocam viva indignação.

 

Amundson, desta feita muito fluente, comentou o resultado de alguns concursos precedentes.

Minha querida Pretinha (já estavam quase íntimos), são favas contada. Há verdadeiros absurdos neste meio. Veja o concurso para a escolha do símbolo dos 50 anos de Brasilia . Pior, a  logomarca da Copa do Mundo, de 2014. Aliás, sua imagem é bastante sugestiva, denota que todo mundo está querendo meter a mão na bufunfa.

 

Acrescentou:

Há muita fraude e enrolação nestes concursos, seleções e premiações. Não querem nada transparente, registrado ou regulamentado, porque se beneficiam destas distorções. Por isto, são contra direitos de profissionais e investem contra a regulamentação da profissão de designers.

 

Amundson, consternado, deu o braço à Pretinha. Sensibilizado, convidou-a para tomar uma cerveja. Como Pretinha é abstêmia, limitaram-se a beber sucos de frutas nativas, orgânicas e certificadas. Mais do que isto, produzidos em eletrodomésticos normatizados e projetados por autênticos designers. Mais ainda, por empresas nacionais.

 

Estavam em outro mundo, de fantasia e encantamento. Não fossem duas espécies de gentes distintas, a saber, homo quase sapiens e cadelis eticammenti  correta, certamente rolaria alguma coisa mais.

 

 

Wagner Braga é professor aposentado da UFCG


Data: 01/06/2010