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Artigo - O grande líder antissindical ou os segredos de uma world trade corporation

Wagner Braga Batista

 

Noronha era um sem vergonha nato. Dizia-se uma sina, uma rima e uma solução para o mundo. Uma legitima imagem da escancarada desfaçatez reinante. Sua virtude, era não ter escrúpulos. De espécie alguma. Tinha anos de estrada nesta hábil arte da sem-vergonhice. Construíra um extraordinário currículo em prol desta causa. Desleal desde a infância, aprimorara-se na infâmia e na bajulação.

 

Orgulhava-se se sua operosidade e de seu título de bajulador emérito em todas instituições em que passou. Sua vocação à subalternidade era vivida com tamanha dedicação que seus colegas a reconheciam como ato de grandeza. Apesar disto tudo, era um incompetente. Fora a condição de sem vergonha, não conseguia ser outra coisa. Por isto, quando adulto não tinha emprego ou profissão. Só possuia uma ocupação: a sem sem vergonhice.

 

A inabilidade para o emprego, vulgarmente conhecida como desempregabilidade, o transformou num lumpen.

 

Portanto, vivia de atividades intermitentes entre a sem vergonhice e o lumpensinato.

 

No entanto, num dia de extrema felicidade teve um insight. Percebeu muita gente ao seu redor insatisfeita. Não com os rumos da sociedade, com o rebaixamento dos padrões de vida e com a degradante sociabilidade. Neste plano todos lumpens achavam que estava tudo bem. Estavam descontentes com os serviços das academias de fisiocultura, com a qualidade da cerveja, com a desonestidade no tráfico, com a falta de profissionalismo das meninas que prostituíam. Nestas esferas, davam vivas demonstrações de indignação social. Indignados, espancavam suas mulheres, manifestavam aversão às sogras, detestavam vizinhos, reclamavam da comida, davam chute nos cachorros, jogavam pedra nos gatos e em vitrais de igrejas. Mas seu ódio mais recôndito e intenso estava dirigido para outra coisa.

 

Tinham ódio visceral a sindicatos.

 

Daí o insight.

 

Primeiro, Noronha identificou peculiaridades etnográficas neste estrato social classificado como putos da vida.

 

A seguir deu curso à brilhante idéia. Por que não canalizar suas potencialidades críticas e suas criativas energias antisindicais para um orgão de classe?

 

Um orgão de classe de novo tipo, com renovadas motivações.

 

Resolvera criar uma associação dos que não queriam ser representados por sindicatos. De pronto teve adesão de toda súcia do quarteirão. Os cafajestes do bairro se mobilizaram. Os canalhas circunvizinhos apresentaram-se para aderir à causa. Promoveram a impossível unidade de interesses espúrios para se incorporar unanimemente a esta iniciativa.

 

As donas de casa e mães de família honradas sentiram-se temerosas do alcance deste agregado.

 

De imediato pensaram no caos que se instalaria nas ruas e invadiria seus lares. Seus maridos desempregados e revoltados, certamente iriam se sensibilizar com esta proposta. Seus filhos ficariam vulneráveis a esta comoção. A esta convocação que fora capaz de aglutinar todos os pústulas e oportunistas das redondezas.

 

Pois bem, dia a dia o movimento se ampliava. Houve a primeira reunião. Dezenas de crápulas se juntaram pensando que iam fazer algum ganho. Noronha explicou que nada iriam rapinar naquele momento.

 

Advertiu: Precisamos ter os olhos voltados para o futuro.

 

A chusma não se precipitou, nem se desiludiu. Ouviu atenta a explanação de Noronha. Quando tomou conhecimento do alcance da associação, exultou.

 

Na terceira reunião a ansiedade era enorme. A unidade incontestável. A tal ponto que quase abdicavam do proposito inicial e saiam juntos, umbilicalmente unidos, para faturar algum nas redondezas.

 

Noronha mais uma vez conseguiu demover a todos da inconsistência de ganhos efêmeros e de curto prazo.

 

Precisamos nos unir pensando no nosso futuro.

 

Tal vislumbre repercutiu em sucessivas mostras de desprendimento.

 

Canalhas declinaram de qualquer postulação em nome dos cafajestes. Estes, demonstrando grande desprendimento fizeram discurso alusivo ao bem comum. Os pústulas, num ato de extrema generosidade, diziam-se dispostos a entregar a direção do movimento aos pilantras, mais aptos e conseqüentes na direção de negócios escusos. Estes declinaram da deferência afirmando que geriam apenas o roubo de negócios alheios, modestamente não se sentindo habilitados para fraudar a própria entidade de classe. O pessoal do tráfico não deu as caras, mas deu tiros de solidariedade a esta nobre iniciativa. Assaltantes também ofereceram seus nobres serviços. Os levianos juraram piamente que tudo fariam para promover esta nova classe sem leviandade. Os pulhas e sem vergonhas, os mais autênticos noronhas, irmanaram-se num gesto de indescritível apreço pela promiscuidade administrativa. Queriam porque queriam assegurar o direito de malvers ar, de prostituir e atravessar todo e qualquer bagulho. Descarados, para não fugir a regra, dispuseram-se a fazer o estatuto. Falsários, o marketing da associação. Num gesto que denotava espírito de sacrifício, os biltres se apresentaram para assumir os primeiros encargos financeiros da entidade. Os infames lhes seguiram neste propósito. Não para roubar, chantagear, achacar ou ludibriar seus pares, todos juraram que em nome da causa só aliviariam incautos e expropriariam todo aquele que fosse sindicalizado, os verdadeiros inimigos da classe.

 

Num gesto unitário, desarmaram os espíritos e o corpo, tiraram as mãos dos bolsos. Sem precaução ou cautela, deram-se as mãos.

 

Para fechar a reunião e esconder a ata, antes que fosse pungada inadvertidamente, Noronha propôs um lema para a associação: desprezíveis de todo pedaço, uni-vos.

 

Ardorosamente aplaudido, ainda fez sua profissão de fé na leviandade, na mentira, na livre iniciativa e na adesão incondicional a toda sorte de vantagens e falcatruas.

 

Reiterou:

Chusma amiga, louvo a submissão de todos aos valores da indignidade humana. A indignidade que nos enobrece e será exercida com espontaneidade e justiça, como ato mais elevado da baixeza humana.

 

Isto feito, e se despediu de todos.

 

Ao chegar ao seu muquiço mal conseguia dormir. Ficara agitado. Fazia projeções que estavam muito além de suas primevas ambições mesquinhas. Afinal só queria montar uma pequena associação. De repente se dera conta que organizara uma portentosa quadrilha. Que tinha em mãos os recursos necessários para desenvolver uma consistente estratégia competitiva. Que poderia inserir este prodigo segmento no mercado. Que demonstravam inegável capacidade empreendedora e todas condições para assegurar a sustentabilidade de seus seus negócios. Em síntese, poderiam obter lucros astronômicos sem grande esforço, responsabilidade ou generosidade.

 

Por fim, agora conseguiria dormir. Estava convicto das virtualidades do antisindicalismo, porém não queria mais apenas uma associação de não sindicalizados. Tinha novas ambições. Vislumbrava mais do que uma simples associação. Mais do que um simples e modesto empreendimento da chusma do quarteirão.

 

A partir de então, tinha plena certeza. Poderia voar mais alto. As vantagens competitivas que tinha em mãos lhe credenciavam para se tornar um player, para organizar uma world trade corporation.

 

 

Wagner Braga é professor aposentado da UFCG


Data: 18/05/2010