topo_cabecalho
Artigo - Design, poesia e projeto

Wagner Braga Batista

 

Não faças versos sobre acontecimentos.

Não há criação nem morte perante a poesia.

(...)

Penetra surdamente no reino das palavras.

Lá estão os poemas que esperam ser escritos.

(...)

Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra

e te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível, que lhe deres:

"Trouxeste a chave?"

 

Á procura da poesia Carlos Drummond de Andrade (*)

 

 

Como as palavras, os objetos têm vários significados, escondem mil respostas e se impõem por meio de inúmeras soluções. Já existem como concepção, mas tal qual a poesia requerem que conheçamos sua essência, sua aparência e sua matéria. Estão mergulhados no limpo até que sejam despertados para uma nova realidade. Na qual ganham objetividade, realizam-se por meio do significado que diferentes culturas lhes atribuem.

 

O projeto é como um processo de reconhecimento de objetos em estado latente. Latentes, signos de sua própria realidade. Os objetos lá estão à espera de quem os desvele. E lhes dê vida própria.

 

Contudo, a realização do objeto exige trabalho meticuloso e silencioso, como passos de quem penetra num reino ainda desconhecido. Ainda tímido e cauteloso, o projetista procura conhecer esse mundo fantástico onde estão imersas inúmeras possibilidades. Estão contidas em objetos confusos, uma vez que não têm identidade ou vida própria. É preciso que alguém os identifique, que os reconheça e lhes traga para uma outra realidade. Que lhes abra a porta do mundo. Porém, é preciso a chave?

 

Há uma passagem da vida de Michellangelo Buonarotti muito significativa. Quando esculpia estátuas que dariam sustentação ao túmulo do Papa Julio II. foi interpelado por um curioso. Perguntou-lhe o que fazia. Respondeu que retirava excessos para libertar as formas que estavam contidas no bloco de pedra.

 

Essa passagem é muito sugestiva. Reveladora do que é um projeto. O projeto não oferece garantias de seus resultados. Implica em riscos. Porém, o projetista age como se estivesse vendo o interior da pedra. Não parte de uma tabula rasa. Tem acúmulos de conhecimento e de habilidades. Mais do que isto, tem sensibilidade e percepção do meio em que atua e do seu ofício. É capaz de conceber, de visualizar formas, que ainda não são tangíveis. O projeto consiste em materializar, escrupulosamente, imagens e formas que existem apenas em sua imaginação. Como se lhes dotasse de anima, de alma, de movimento para saírem de sua imaginação e da pedra.

 

Por isto Michellangelo afirmara que estava apenas libertando formas que eram prisioneiras da pedra.

 

Assim como os objetos e a poesia, as palavras também desconfiam. Exigem prudência e respeito de quem as abraça. De quem colhe e usa seus significados. De quem as autentica ou as desqualifica como expressões da realidade e da necessidade. Da necessidade imperativa de quem fala e quer se fazer entender. De quem se utiliza e requer que o objeto atenda a sua necessidade.

 

As palavras como os objetos não são entidades vazias, coisas supérfluas. São partes da vida que se processa. Destituídas de conteúdo e propósito, as palavras, assim como os objetos, anulam-se na noite e se exaurem em desprezo, sentencia o poeta.

 

Repara:

Ermas de melodia e conceito

Elas se refugiaram na noite, as palavras

Ainda úmidas e impregnadas de sono

Rolam num rio difícil e se transformam em desprezo (**)

 

Não podemos deixar que objetos, assim como as palavras, se percam como coisas inúteis e sem significado pra vida. É preciso que despertemos em nós, a sensibilidade peculiar de todos que projetam. É preciso que despertemos nos objetos, a anima que lhes retira da pedra. Que os conclama para a existência e pra seus significados.

 

A poesia trabalha com significados próprios. Com o significado que atribui às realidades e à realidade. Utiliza-se de várias figuras de linguagem, mas principalmente da analogia e de metáforas. Fala por meio delas colocando em contraposição a visão adquirida e uma nova imagem. A imagem poética da realidade, das palavras e dos objetos.  

 

Assim como na poesia, no projeto surgem imagens e objetos que existem como possibilidades, como alusões ou metáforas. Como signos de uma nova realidade. Por isto, faz se necessário entender esta estranha linguagem por meio da qual nos falam objetos e imagens por intermédio de nossos projetos.

 

O que faz o designer?

 

Mais uma vez Drummond nos oferece uma pista. Fala da morte de um leiteiro, cenário trágico, no qual se apresentam cores e objetos. Nos diz:

 

Por entre objetos confusos

Mal redimidos da noite

Duas cores se procuram

Suavemente se tocam

Amorosamente se enlaçam

Formando um terceiro tom

A que chamamos aurora.

 

Não temos a chave que nos abre o reino dos projetos. No entanto, somos levados a crer que o desenhista industrial ou designer é chamado a acordar madrugadas para iluminar formas e cores desperdiçadas. Recolher objetos embaralhados no chão da História. Em linguagem especializada, é convidado à realizar a  análise sincrônica e diacrônica de objetos perdidos, achados ou desencontrados em sua história.

 

Para concluir, reiteramos o que diz o poeta:

 

Não há criação nem morte perante a poesia.

 

Por isto, desenhistas industriais ou designers, são chamados a fazer da utilidade e da presença de seus artefatos, sua permanente memória.

 

 

Wagner Braga é professor aposentado da UFCG

 

 

(*) Á procura da poesia in A rosa do povo,(1945) Carlos Drummond de Andrade Poesia e prosa volume unico, Ed Aguillar, Rio de Janeiro, 1983 p. 159 / 161

(**) Idem


Data: 07/05/2010