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Artigo - A curiosidade e a longevidade do gato

Wagner Braga Batista

 

 

A curiosidade matou o gato.

Ditado popular

 

 

Por um lapso, o artigo de ontem anunciava duas partes e foi publicado integralmente. Para cobrir esta lacuna, sentimo-nos no dever de continuar discorrendo sobre a curiosidade.

 

Inicialmente vamos utilizar um ditado popular, em epigrafe, para falar de educação. Depois, sobre os pobres gatos.

 

A catequese, a educação canônica, tinha como móvel o medo. O medo que se infundia no educando.

 

Sua base não era o estimulo à curiosidade, mas o temor do conhecimento. Calcada na superstição infundia a crença de que o novo era sinal de incessantes dúvidas, inquietações, angústias e apreensões. Estava certa no diagnóstico, porém equivocada nas diretrizes para a educação.

 

Enraizada em prescrições e proibições, esta modalidade de educação indicava o que era passível de conhecimento e o que não se devia conhecer. Abrigando o conhecimento sob o manto das superstições, oscilava entre premiações e sanções. Em reconhecimento para aqueles que reproduziam seus preceitos e castigos para os que os questionavam, os hereges. Para eles se instituiu a censura e o Index-Index Librorum Prohibitorum, criado em 1553. Para os recalcitrantes, a fogueira.

 

O Index era uma lista de publicações proscritas pela Igreja Católica. Foi atualizado até a trigésima segunda edição, em 1948.  È oportuno ressaltar, que este instrumento de censura só abolido pelo Papa Paulo VI, em 1966.

 

Paradoxalmente, a educação ao invés de se converter numa força inovadora e emancipadora, tornou-se a forja do conservantismo, da reprodução de relações sociais e do temor ante o desconhecido.

 

Sua matriz não estava centrada na dúvida, na curiosidade e na busca do conhecimento, mas na crença irracional e na fé incondicional no desconhecido. Poderia ser grosseiramente simplificada pela sistemática submissão do educando a preceitos e ao disciplinamento formais. A admoestações do tipo, não faça isto, não veja aquilo. Não leia aquele livro porque senão Deus castiga.

 

Deste modo, a curiosidade humana era aplacada por rituais de autoflagelação e de comiseração que sufocavam pulsões humanas. Para dirimir possíveis dúvidas, especulações e questionamentos, a reflexão era subordinada à contemplação. Viabilizava-se pela integração ao universo místico, no qual todas respostas advinham de canônes, de dogmas e da fé.

 

Neste contexto, a curiosidade deveria ser eliminada porque seria o móvel da perdição humana. Portanto, seguindo esta premissa, o estímulo à curiosidade também deveria sinalizar medo e a possibilidade de punição. O conhecimento deveria estar sempre subordinado à superstição.

 

A reforma religiosa atenuou esta orientação educacional ao valorizar o livre arbítrio. Estimulou também o individualismo, legitimou o lucro e um novo tipo de curiosidade alicerçada quase que exclusivamente na perspectiva de obtenção de vantagem.

 

Mais ou menos neste contexto, segundo dizem as más línguas, foi cunhado o ditado popular: a curiosidade matou o gato.

 

Mas porque o gato, e não explicitamente o homem.

 

Primeiro porque o homem seria portador da curiosidade por conta de um desvio original, que poderia ser sanado pela mudança de sua índole e pela redenção de sua alma. O gato, no frigir dos ovos, seria apenas um bicho. Bichos não têm alma e não precisam ser redimidos. Poderiam arder nas fogueiras da vida e quiçá se viabilizar como matéria econômica em churrasquinhos de gato.

 

Porém a escolha do bicho gato, não é aleatória. Pois o gato é um animal estranhamente curioso. Portanto vulgarizou-se como expressão da curiosidade. A curiosidade que deveria ser debelada e punida.

 

Punida por quem? Paradoxalmente não seria punida por Deus, mas pela mão dos homens.

 

Como? Criando-se armadilhas letais, utilizando-se de ardis e de iscas que instigassem a curiosidade dos pobres gatos.

 

Além do mais, os gatos carregavam estigmas. Uma vez que a conduta do gato sempre foi associada a péssimos hábitos. Ditados populares advertiam-nos para a ladroagem. Chamavam a atenção para a ação dos gatos. Fiquem com um olho no peixe e outro no gato, senão ele desaparece rápido como mão de gato. Antigamente era assim. Hoje, continua sendo. Vulgos gatos surgem em dispositivos para minimizar defeitos ou roubar energia elétrica.

 

 Depreciados como animais de quinta categoria-“levar gato por lebre”- não valeriam aquilo que comem: Vou lá dar carne a gato.

 

Além dos atos furtivos, os gatos também foram vinculados à traição e aos gestos lascivos. Se fossem pretos, pobres dos gatos. Era demonizados. Visto como encarnação de Satanás. Sua visão antecipava azar ou má sorte. Esta crença persiste até os dias de hoje.

 

Mas os gatos ainda seriam alvos de duras provações. Sua morte e seus flagelos seriam insuficientes, uma vez os gatos teriam sete vidas. Portanto, deveriam ser supliciados sete vezes seguidas.

 

No entanto, a reforma religiosa abriu campo para que os gatos fossem examinados sob outro viés. Vistos por futuros liberais pela sua esperteza. Pela sua malandragem. Pelo seu egoísmo.

 

Sob esta ótica, seriam animais virtuosos, aptos ao empreendedorismo e aos bons negócios. Sua habilidade em ludibriar e tirar proveito de situações críticas foi identificada como vantagem competitiva. Suas sete vidas como longevidade para negócios, aumento da capacidade empreendedora e possibilidade de extensão de diferenciais estratégicos. Essa percepção, no entanto, não se tornou consensual entre neoliberais. Um ultra-ultraliberal observou que a curiosidade poderia ter desdobramentos controversos.

 

Imaginem se o gato, nossa plataforma publicitária movido por insignificante curiosidade volta-se contra nosos propósitos. O liberalismo é avesso ao curiosismo. Sempre repelimos veementemente a bisbilhotice do poder público e de quem quer que seja em nossas fraudes e negócios. Além do mais, as sete vidas dos gatos deveriam ser vistas com cautela, com desconfiança. Talvez não se configurassem como vantagens competitivas, uma vez que eram portadoras de estigmas, de karmas intangíveis, de sinalizações negativas e pouco promissoras para estratégias de marketing. Sete vidas de suplícios, não significariam necessariamente longo tempo para os negócios. Como bom anglo-saxão, fez mais uma reserva. Na minha cultura ultra-ultra e mais um pouco ultraliberal, o gato é visto como sinônimo de indolência: “Um gato tem nove vidas. Em três, ele brinca, em mais três ele vadia, e nas últimas três ele descansa”. Portanto, é gatuno e esperto como nós, porém não é um ser proativo, empreendedor e apto a promover a empregabilidade.

 

A perspectiva de longa vida dos empreendimentos, não poderia ter como contrapartida apreensões intermináveis, prejuízos ao bem estar de empreendedores e à fruição dos vultosos lucros obtidos nestes negócios. Os riscos deveriam ser criteriosamente avaliados.

 

Pois bem, como vemos, nem mesmo os mais inescrupulosos oportunistas, hesitavam em ter nove ou sete vidas na pele de um gato.

 

Mais uma vez, desqualificaram os pobres gatos.

 

Deste modo, graças a sua curiosidade e sua despretensiosa esperteza, o gato ganhou notabilidade e se tornou uma unanimidade. Ponto de convergência crítica entre o senso comum e a elaboração teórica, conceitual e metodológica de eruditos neoliberais. De um lado, como objeto de desdouro e de depreciação na cultura popular e de outro, pelo reconhecimento de suas artimanhas, seus ardis e espertezas motivo de especulações da moderna e ultra ultra-conservadora economia de mercado.

 

Paradoxalmente, a curiosidade não matou, deu apenas notoriedade ao gato.

 

 

Wagner Braga é professor aposentado da UFCG


Data: 05/05/2010