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Artigo - Os falsos designers e a exuberância da nova barbárie

Wagner Braga Batista

 

Há um filme muito sugestivo. Remete-nos ao dilema de um artista. Um monge medieval que desiste de pintar ícones para igrejas devastadas pelas hordas de bárbaros que invadiam a Ásia Central. Seu nome Andrey Rublev.(1360-1430) (*).  Centrada na impotência do artista e no ceticismo, que dela advém, a narrativa relata a dificuldade de encontrar alternativas frente à barbárie. Culmina com a superação deste quadro crítico, ensejando que a criatividade humana sempre encontra alternativas para se sobrepor às mais terríveis adversidades.

 

Associamos este filme ao trecho de um poema de José Carlos Capinam, feito imediatamente após o golpe militar de 1964: Inquisitorial (**). 

 

O que agir ?

Se o que agimos

nos define a vida

e a consciência desta mesma vida.

Ante seus momentos

e ela mesma ainda?

 

Nele, Capinam indaga sobre o papel da arte e da poesia em conjunturas opressivas. Assinala que conseguimos com relativa facilidade nos reportar e denunciar o passado, porém somos propensos a fechar os olhos e nos omitir diante de agruras do momento presente.

 

Quando falamos em barbárie é imediata a associação ao passado. Ao império dos mais fortes. A contextos nos quais diante da falta de leis imperava a “lei dos mais fortes”. Os mais fortes se sentiam no direito de seviciar ou matar. Não encontrando obstáculos, faziam da pilhagem um modo de vida num regime de grande escassez. A barbárie era sua cultura.

 

É neste contexto que aflora o dilema de Andrei Rublev. Produzir por quê? Para quem? Para que? Se tudo ao redor está sendo degradado ou destruído.

 

Referindo-se à barbárie, Leitão de Abreu, um ministro da ditadura do General Figueiredo, utilizou-se de uma frase atribuída à Goethe, para legitimar medidas de exceção: “Até mesmo uma lei draconiana é melhor do que a falta de leis”. Seu propósito era discricionário, da mesma natureza daqueles que se valiam da falta de leis e da força das armas para fazer valer a barbárie. Porém, somos levados a crer que a falta de leis estimula e viabiliza a barbárie.

 

No entanto, a barbárie não vinga apenas na ausência de leis, uma vez que também prospera em presença delas. Prospera quando as leis não têm como substrato a justiça, nem tampouco valores morais. Uma vez que são leis que desprezam a sociabilidade, a justiça e a ética. O vazio legal tem como homologia o vazio moral. Paradoxalmente, institui leis que dão suporte à moderna barbárie. São as chamadas leis de mercado.

 

Atualmente torna-se fácil condenar a barbárie na antiguidade. Contudo, é preciso analisá-la em perspectiva histórica. Interpreta-la como resultante da escassez e da absoluta falta de preceitos sociais, capazes de nortear a relação entre dessemelhantes. A barbárie, grosso modo pode ser entendida como pulsão provocada pela fome e pela vontade de comer. Compreensível diante da carência de alimentos e do primitivismo das tribos nômades que a praticavam. Porém, a barbárie se torna inconcebível e injustificável nos dias atuais. Numa sociedade que dispõe de potencialidades socioeconômicas capazes de suprir quase todas demandas da humanidade.

 

No entanto, há uma nova barbárie que se desenvolve em meio à prosperidade e ao monstruoso aparato legal da modernidade.

 

Praticada por intermédio de artifícios ideológicos e sutis mecanismos de discriminação, a barbárie moderna avilta dessemelhantes pobres, excluídos e marginalizados. Legitimada por inconsistentes leis do mercado, assegura o direito à soberba, à luxúria, à ostentação, à vaidade e à segregação social. Desqualifica os que não tem poder de consumo, negando elementares direitos sociais aqueles que não podem pagar para obtê-los. Mais refinada, utiliza-se de outras formas de violência. Não se impõe pela força da espada, ainda que não a descarte de todo. Viabiliza-se pelo poder de dissuasão da midia, pela publicidade enganosa e pelas estratégias de marketing. Estes veículos promocionais indicam o que é importante na sociedade. Conferem notabilidade e prestígio. Definem quem participa do jogo de poder. Quem são celebridades e quem são os merdas. Tornam visíveis coisas fúteis e obscurecem valores morais. Cultuam a exuberância e desqualificam a austeridade.

 

São estes veículos que modelam a nova barbárie, a cultura da exuberância e as refinadas formas de violência perpetradas em seu nome.

 

A violência que se manifesta no luxo e na silenciosa segregação social imposta pelas grandes marcas. Pelos bens simbólicos que designam lugares sociais. Que indicam onde cada um deve estar. Que permitem adesão a círculos restritos de poder, de riqueza, de fama e de prostituição.

 

São os veículos de propaganda que diariamente varrem as ruas. Não do lixo que essa sociedade produz, mas de seres humanos indesejáveis, que atentam contra a visibilidade da urbe. São eles que criminalizam a pobreza, discriminam os feios, sujos e malvados. São eles que asseguram o bem estar, o conforto e a consciência sadia dos que fazem da perversão humana seu maior entretenimento. São eles que celebram e atualizam a exuberância, a ostentação e a vaidade como expressões de requinte e modernidade.

 

São os falsos designers que lapidam a cultura da exuberância, expressão desta nova barbárie.

 

 

Wagner Braga é professor aposentado da UFCG

 

 

*  “Andrei Rublev” dir.Andrei Tarkovsky, URSS, 1966

 ** Capinam, José Carlos, Inquisitorial, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2ª ed, 1995, p. 71 / 72.


Data: 29/04/2010