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Ciência tenta reinventar a cana na busca por mais etanol

Pesquisadores brasileiros trabalham para gerar um novo tipo de cana, com mais fibra e menos sacarose

 

Que tal uma cana-de-açúcar com pouco açúcar? Pode soar contraditório - algo na linha de um cheeseburger sem queijo -, mas é justamente nisso que pesquisadores brasileiros estão trabalhando para a próxima geração de biocombustíveis no país.

 

Depois de séculos selecionando e cruzando variedades de gramíneas ricas em sacarose, para chegar ao que hoje chamamos de cana-de-açúcar, os cientistas agora se veem diante de um novo desafio biotecnológico: voltar às raízes genéticas da planta e gerar um novo tipo de cana, com mais fibra e menos sacarose, voltada para a produção de etanol celulósico.

 

Essa nova espécie ainda não existe no campo, mas seu nome já pode ser ouvido em todas as reuniões científicas que falam de biocombustíveis: "cana-energia". O objetivo é fazer uma planta geneticamente otimizada para a produção de biomassa (matéria orgânica vegetal), em vez de sacarose (açúcar).

 

Para isso, será preciso reprogramar a maneira como a cana distribui os carboidratos que produz via fotossíntese. Ou, como dizem os cientistas, alterar a "partição de carbono" da planta.

 

Depois de ser sugado da atmosfera e fixado quimicamente na forma de carboidratos, esse carbono (proveniente do CO2) pode seguir dois caminhos: síntese de sacarose ou síntese de celulose. Nas suas raízes, a cana foi uma planta desenvolvida para produção de sacarose. "Por acaso, agora, a gente usa a sacarose também para fazer etanol, mas a planta foi feita para produzir açúcar, e não energia", explica a pesquisadora Glaucia Souza, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP).

 

Historicamente, portanto, as variedades selecionadas para cultivo foram aquelas que direcionavam a maior parte do carbono para a síntese de sacarose. Agora, com o etanol celulósico despontando no horizonte, a prioridade é outra.

 

"Antes, quando aparecia uma cana parruda, com muita fibra e pouco açúcar, a gente jogava fora. Hoje são justamente essas variedades que procuramos", completa Glaucia, que coordena o Programa de Bioenergia da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Bioen-Fapesp).

 

O projeto é um dos pilares do esforço brasileiro para dominar a tecnologia do etanol celulósico, que permitiria até triplicar a produtividade de biocombustível dos canaviais. Hoje, o bioetanol é produzido por meio da fermentação do açúcar do caldo de cana, que representa apenas um terço do carbono - ou seja, da energia - presente na planta. Os outros dois terços estão embutidos na biomassa, divididos entre as folhas e o bagaço do colmo.

 

Uma opção seria desenvolver uma cana com mais açúcar e mais biomassa ao mesmo tempo. Mas há um limite para isso, pois a quantidade de carboidratos que a planta produz pela fotossíntese é finita. Ou ela vai fazer mais sacarose ou ela vai fazer mais celulose. As duas coisas ao mesmo tempo, para sempre, não dá.

 

Aí surge a segunda opção, da cana-energia, voltada especificamente para o etanol celulósico. Que é possível, os cientistas não têm dúvida. O desafio é chegar lá numa fração do tempo que levou para fazer a cana-de-açúcar.

 

Entra em cena a genética. No laboratório de Glaucia, pesquisadores trabalham com um portfólio de 40 genes da cana, ligados a características como aumento de biomassa, aumento de açúcar, tolerância a seca e estrutura da parede celular. Dez já estão no "pipeline", sendo testados em plantas transgênicas, que crescem dentro de uma salinha climatizada no canto do laboratório. As expectativas são boas, mas é sempre arriscado fazer prognósticos com uma planta que tem de oito a dez cópias de cada cromossomo.

 

Três vezes maior que o genoma humano, com 10 bilhões de letras químicas, organizadas em 120 cromossomos, o genoma da cana é um pesadelo biotecnológico. Vários pesquisadores no mundo já tentaram produzir canas transgênicas, sem sucesso. No laboratório, até que a coisa funciona.

 

As plantas crescem melhor, resistem ao ataque de insetos, produzem mais açúcar ou seja lá o que for o objetivo da transgenia. Mas basta colocar as plantas no campo, para produção em larga escala, que o efeito da transformação genética desaparece misteriosamente.

 

Como a cana tem muitos cromossomos, há muita recombinação de material genético à medida que a planta cresce e suas células se multiplicam. A suspeita é que, em meio a todos esses rearranjos genômicos, o efeito da modificação genética acaba se diluindo, até desaparecer. Na linguagem dos cientistas, o transgene é "silenciado".

 

"Tudo que já é difícil nas outras plantas é muito mais difícil na cana", resume a pesquisadora Helaine Carrer, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da USP de Piracicaba, no interior paulista.

 

Produção

 

Financiado pelo Bioen e associado ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol, o laboratório de Helaine está empenhado na produção de plantas transgênicas. Duas salas climatizadas guardam centenas de vidrinhos com mudas de cana geneticamente modificadas para aumento de biomassa.

 

Em alguns casos, os cientistas querem aumentar a expressão de um determinado gene, inserindo mais cópias dele no genoma. Em outros, querem silenciá-lo. Depois veem o que acontece com a planta.

 

"Para saber o que um gene faz, temos de modificá-lo", explica Helaine, ressaltando que os genes usados na pesquisa são da própria cana-de-açúcar. O objetivo é acelerar o processo de melhoramento, identificando características genéticas específicas que possam ser de interesse para a cana-energia. Nesse momento, a equipe trabalha com 12 genes ligados a aumento de fotossíntese, aumento de biomassa e transporte de água para as células.

 

"A cana é uma planta incrível. Sabemos que ela é muito produtiva, mas pouco sabemos sobre como ela faz isso. Precisamos de muita ciência básica ainda", ressalta Helaine. Sem entender como uma fábrica funciona, diz ela, não há como aprimorar seus processos. E a cana é, essencialmente, uma fábrica de açúcar - que, agora, se quer transformar numa fábrica de celulose.

 

Pesquisas desafiam a evolução

 

Se a busca por um novo tipo de cana, com alto teor de biomassa, exige um trabalho de reconstrução genômica, a eventual utilização dessa biomassa para produção de etanol celulósico passa, obrigatoriamente, por um serviço de demolição molecular.

 

Cada célula da cana, assim como de outros vegetais, é revestida por uma malha de fibras de celulose e outros polímeros de açúcar que, juntos, funcionam como uma muralha, dando sustentação à planta e protegendo-a contra o ataque de fungos e bactérias.

 

Para acessar os açúcares que compõem essa celulose e transformá-los em biocombustível, os cientistas terão de aprender a desmontar essa parede, molécula por molécula ou até átomo por átomo. Um trabalho nada trivial, que requer desfazer em alguns anos de pesquisa algo que a natureza levou milhões de anos para construir.

 

"Os tecidos vegetais evoluíram para não serem decompostos. As árvores não têm como fugir dos predadores, então elas precisam se proteger de alguma forma para evitar que fungos penetrem nas suas células e as devorem vivas", explica Igor Polikarpov, pesquisador do Instituto de Física de São Carlos, da Universidade de São Paulo (USP).

 

Ele é um de vários cientistas brasileiros, espalhados por várias disciplinas, empenhados em descobrir e desenvolver enzimas naturais capazes de quebrar essa muralha biológica. Sem isso, a cana-energia não servirá para nada.

 

Essa tecnologia, na verdade, já existe. A natureza está cheia de fungos e outros microrganismos capazes de digerir biomassa vegetal, e várias enzimas já foram isoladas deles para uso industrial. Detergentes para lavar louça, por exemplo, são cheios de enzimas que degradam os resíduos de comida em pratos e panelas.

 

Da mesma forma, há misturas enzimáticas (chamadas coquetéis) no mercado que já podem ser usadas para produção de etanol celulósico em laboratório, mas o custo ainda é alto demais para aplicação em escala industrial e falta especificidade para o bagaço de cana, que é a principal fonte de biomassa disponível no Brasil.

 

"Quem planta cana somos nós e quem entende de cana somos nós. Então quem tem de desenvolver essa tecnologia somos nós", diz o microbiólogo Gustavo Goldman, pesquisador da USP de Ribeirão Preto e do recém-construído Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE), em Campinas.

 

Ele é especialista em fungos do gênero Aspergillus e quer entender como esses organismos controlam geneticamente a produção de suas enzimas. "Não é por falta de gente que não fazemos etanol celulósico ainda; é porque o problema é difícil mesmo", diz. "Precisamos de muita pesquisa. Muita pesquisa mesmo."

 

O desafio é desenvolver um coquetel enzimático brasileiro, mais barato, mais eficiente e específico para demolição de bagaço de cana, que torne a produção de etanol celulósico economicamente viável em escala industrial. "Claro que há enzimas no mercado que degradam celulose, mas elas foram desenvolvidas para outras aplicações", destaca o pesquisador Richard Ward, do Departamento de Química da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP de Ribeirão Preto.

 

Ele trabalha com o melhoramento de enzimas que são identificadas na natureza por sua colega Maria de Lourdes Polizeli, do Departamento de Biologia, ambos associados ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) do Bioetanol.

 

Maria de Lourdes é outra especialista em fungos - que, por sua vez, são especialistas em digerir celulose. "Quando você vê uma madeira em decomposição, é porque tem algum microrganismo lá produzindo enzimas e se alimentando dessa madeira", diz a pesquisadora, que guarda em sua sala uma geladeira com mais de 200 espécies de fungos, coletados de várias regiões e ambientes do Estado de São Paulo - de amostras de solo, de esterco de vaca, de cascas de árvore, folhas, fontes de águas termais, canaviais, laranjais. É a maior biblioteca de fungos do país.

 

O dia a dia de seu laboratório consiste em identificar, isolar e estudar a atividade de enzimas presentes nesses fungos, visando a possíveis aplicações industriais - incluindo a produção de etanol celulósico. Uma das espécies mais promissoras identificadas até agora é o Aspergillus niveus, isolado de uma manga podre que um aluno pegou do chão ali mesmo, no campus da universidade.

 

Ensaios feitos no laboratório mostraram que o fungo é um ótimo produtor de enzimas degradadoras de parede celular e que ele resiste bem em temperaturas de até 50 graus Celsius - uma característica importante para eventuais aplicações industriais.

 

Uma vez que uma enzima promissora é identificada por Maria de Lourdes, cabe a Ward desvendar a estrutura atômica da molécula e fazer os "ajustes" necessários para que ela funcione da melhor maneira possível.

 

O processo envolve a substituição de aminoácidos em pontos específicos da enzima, principalmente naqueles em que ela interage com as moléculas da parede celular, chamados "sítios ativos". As enzimas funcionam como picaretas biológicas, quebrando as ligações químicas quem mantêm as moléculas da parede unidas. Os sítios ativos são a ponta da picareta.

 

Mas uma picareta só não basta. É preciso uma caixa inteira de ferramentas. A arquitetura da parede celular é bastante complexa e extremamente resistente, formada por um emaranhado supercompacto de fibras de celulose, hemicelulose e lignina, conformado revelam pesquisas capitaneadas pelo biólogo Marcos Buckeridge, professor da USP, diretor científico do CTBE e uma das principais lideranças científicas do país no campo do etanol celulósico.

 

Enquanto outros procuram pelas ferramentas de demolição, seu grupo se dedica à ciência básica de desvendar e entender a estrutura da parede celular - procurando, assim, por pontos fracos que permitam desmontá-la com maior eficiência. "Não adianta ter enzimas se não soubermos o que elas precisam atacar", resume.

 

A celulose, na linguagem química, é um polímero polissacarídeo - uma longa corrente de moléculas de glicose grudadas umas nas outras. Ou seja, é uma cadeia de açúcares. O objetivo final é romper os elos dessa corrente, deixando as moléculas de glicose livres para serem fermentadas por leveduras, como já é feito tradicionalmente com a sacarose do caldo de cana. Só que, para isso, é preciso quebrar a parede inteira.

 

Para facilitar o trabalho das enzimas, a biomassa é antes submetida a um pré-tratamento químico ou físico que fragmenta a parede e "esgarça" parcialmente as fibras. Mas, ainda assim, é um osso duro de roer. Por isso os cientistas sabem que vão precisar de muitos fungos e muitas enzimas para montar a equipe de demolição ideal.

 

"Não existe o fungo perfeito", diz Polikarpov. "Se houvesse um único fungo superpoderoso, capaz de degradar tudo sozinho, não existiriam mais plantas, porque ele já teria acabado com todas."

 

O mais provável é que o coquetel ideal para o bagaço de cana será uma mistura de diversas enzimas, isoladas de diferentes organismos. Especialista em desvendar a estrutura molecular de proteínas, Polikarpov estuda agora o funcionamento de várias delas para tentar entender como elas interagem com a biomassa.

 

"Para fazer uma boa sopa, você tem de conhecer o sabor de cada ingrediente; da carne, da batata, etc. No coquetel enzimático é a mesma coisa. Para montar a receita ideal, precisamos conhecer a atividade de cada enzima individualmente", compara o cientista.

 

(Jornal da Ciência)


Data: 19/04/2010