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Artigo - A moderna cultura nordestina

Wagner Braga Batista

 

- Apanhou é pouco...Bateram tanto no rapaz que se mijou de tanto apanhar. Ficou com os quartos caídos e as orelhas arriadas. Um olho olhando pra dentro e o outro pra fora. Também quem manda querer ser muderno..

 

A cultura nordestina tem viabilizado a tensa convivência de tradições com signos de modernidade. Numa interação nem sempre harmoniosa, expressa-se magnificamente no imaginário e no humor da cultura popular. Porquanto as oligarquias se esforcem para modernizar seu atraso, credenciando-se pela ostentação de formas arrojadas e bizarras, o povão segue seu caminho. Ironizando e incorporando novos hábitos e costumes com  seu modo de ser. E, com isto, renova com simplicidade e autenticidade sua cultura. Restaura a dinâmica cultural. Por intermédio de complexas assimilações e resistências produz novos modelos ou matrizes culturais.

 

É assim que começa essa crônica. Vamos falar de limites entre o moderno e o arcaico. Esculachando a presunção de elites que escondem seus preconceitos atrás do politicamente correto. Avessas a suas raízes, espelham-se na revista Caras e no ideário da rede Globo. Por meio de receituários, estabelecem a homologia entre moda e modernidade. Pasteurizam o que há de mais significativo nos costumes, no linguajar e na pantomima do povo. Desprezam suas origens para, simploriamente, incorporar e praticar a cultura da moda.

 

Pretendendo-se moderna, essa elite não tem apreço pela cultura regional. Valoriza o que é global, insólito e descartável. Seus referenciais estão no mercado, no delivere. na cultura de pronta entrega pra consumo imediato. No design vulgarizado, no fashion, nas marcas e produtos top de linha. Seu olhar estéril se fixa no supérfluo. Só enxerga o que é suntuoso, banal. Politicamente corretas, querem civilizar, aculturar os pobres para dar visibilidade à insípida cultura dos ricos.

 

Na contramão viceja a bagunça. A virulência de manifestações anônimas e coletivas em cenários feéricos. O rebuliço de verdadeiras inovações culturais.

 

O povão também tem seus ranços e preconceitos. Porém, assimila com mais facilidade os sinais de mudança. Apesar de não ter acesso a muitas fontes de difusão cultural, mostra-se mais sensível e habilitado a perceber o novo. A dotá-lo de significações peculiares e, portanto, originais. Com ironia transforma residuais resistências, seus preconceitos, em alavancas da renovação cultural. Com suas rotinas triviais e rituais peculiares, promove cultura e autentica arte. Cria novas linguagens e significações do real.

 

Essa tensão, entre o que se presume moderno e o que se qualifica como arcaico, não é recente. Arrasta-se há muito tempo. Tem sido objeto de pesquisas acadêmicas e de expressivos movimentos culturais. Entre eles, podemos citar o Quinteto Armorial, grupo estimulado por Ariano Suassuna, que pontificou no campus II, da UFPB Hoje ainda ressoa por meio de um remanescente, Fernando Barbosa, professor da UFCG.

 

Mas, agora vamos virar a página. Falar do arcaico e do moderno, sob outro prisma.

 

Falaremos de Adonhiran Santos, Adon, advogado e  historiador por opção. Recentemente enveredou pelo campo da museologia. Vinculado as suas raízes, decidiu montar, com esforço próprio, um acervo da cultura nordestina. Antes, graças ao seu refinado apetite, já reunira o que de melhor se produziu no gênero musical.  

 

Virtuoso entrega-se ao que faz. Entre tantas virtudes, sempre quis bem a cunhados. A todos eles. Inclusive aos seus ex-cunhados, como eu.

 

Como todo ser humano, Adon também tem um grave defeito: está sempre feliz. È portador de uma alegria contagiante, ameaçadora, que causa temor à Confraria dos Macambúzios ou Sorumbáticos Empedernidos, que dele sequer se aproximam.

Temos antigas e perenes afinidades... tirante esse negócio de usar brinquinho na orelha.

 

Adquirimos o hábito de guardar e reaproveitar tudo. Nesse mister, talvez seja até um pouco mais radical do que ele. De antemão esclareço que esta atitude implica em alguns problemas de convivência com nossas respectivas companheiras. Mas, enfim, como são amores antigos, têm se mostrado tolerantes com nossas  manias.

 

Para explicar essa síndrome fizeram uma taxonomia, na qual nos incluíram. Existem pessoas que vivem fuçando sebos e sucatas, estão num estágio inicial desta patologia. Há os muambeiros que se regozijam de encontrar peças com algum valor cultural. Estes podem ser inseridos no grau dois. Catadores que discretamente vasculham as ruas para encontrar alguma coisa que seja reaproveitável. Já necessitam de alguma terapia auxiliar. E os doidos, mais autênticos e avançados, pegam tudo que encontram na rua, levam pra casa, afiançando que são úteis. Para infortúnio de seus familiares e sem nenhum demérito, são classificados como lixeiros.

 

Retomando nosso mote, o velho Adon empenha-se em ampliar o Museu Vivo do Nordeste, criado nos fundos de sua casa. Este espaço cultural é composto de peças adquiridas em antiquários ou nos arredores de Campina Grande. Com a argúcia de um arqueólogo da cultura, com extraordinário élan, garimpa e cascavilha esse mundaréu à cata de objetos que ganharão nova viva em seu museu. Graças a este empenho. seu museu tornou-se um ponto de visitação.

 

As vezes fico apreensivo ao visitar o museu. Tenho medo que me confundam com coisa velha, impedindo-me de sair. Este é um grave equivoco, que não afeta apenas minha pessoa. É um erro de compreensão. Na verdade os museus não são depositários de coisas velhas. Mas tão somente daquilo que o imaginário moderno consegue visualizar como antiguidade. No entanto, elementos antigos se reconstituem com novos significados e também projetam novos padrões de viva. O que é considerado arcaico também nos renova, sinalizando princípios e valores fundamentais que, alguns, acham que saíram de moda.

 

Mas o museu regional do Adon não é um caritó ou um relicário de valores perdidos ou esquecidos.

 

É diversificado e pluralista. Tem baús, espingardas, lambe-lambes, ferros de engomar e máquinas de costura que as novas gerações desconhecem. É atraente para os que gostam apenas de olhar, para os que não sentam e para aqueles que querem sentar.. Para eles o velho Adon fez um “velso”.

 

Fui feita no capricho

com galhos de juá,

Mas mermo pru precisão,

favor num se senta

Pois tenho as perna fraca

Num vo lhe agüenta.

 

.A poesia matuta tem lugar no museu, impondo-se como advertência:

 

O cabra que é curioso

Pula dos óios pras mão

Mas segura teu facho

Num bula nos troços em vão

O que tá inteiro se quebra

E não tem reparo não

 

Presta-se também para admoestar os que jogam dejetos no chão

 

Meu cumpadi não importa

O que você tem fumado

Fumo de rolo ou de paia

Cachimbo ou baseado

Jogue as bagas no cinzeiro

Sinão fico amuado

 

Pois bem, lembrei-me de Adon transitando pela Feira da Prata.  Certifiquei-me que ele também é moderno, ouvindo a música de Eri e Erisvaldo:

 

Vai ter que entrar na peia, Vai ter que entrar na peia
Esses cara sem futuro de brinquinho na orelha.

 

Simultaneamente, escutava a conversa de dois cabras machos, destes que não medem conseqüências, nem o tamanho de desafetos. Nesse colóquio, falavam sobre modernidade. Entabulavam uma profunda e sincera reflexão. Constatei que, depois da prosopopéia, chegavam a um entendimento. Por meio de uma disjunção positivista, identificaram o certo e o errado. Com ar de reprovação, entabularam um acordo:

 

-Botar brinco na orelha, compadre ?

-Poder, pode. O que não pode é ser viado.

 

O velho Adon, tão arcaico, com brinquinho na orelha.

Pois é...cheguei a uma conclusão: meu amigo Adon é a nova síntese da antiga e da moderna cultura nordestina.

 

 

Wagner Braga é professor aposentado da UFCG


Data: 12/04/2010